terça-feira, 10 de abril de 2018

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO (CAPÍTULO 17)

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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.


O país dos canalhas - Capítulo 17 - A agonia dos países pobres

Por Sebastião Nunes

Meu delírio continuava, embora não fosse mais uma mosca o que eu via. Agora, rebolando de um lado para o outro, estava na minha frente o corpo escamoso, viscoso e empinado de uma cobra enorme, uma serpente terrível, uma víbora inacreditável.

Abaixo da cabeça diminuta, na qual dois olhinhos malignos me encaravam, fundia-se na umbela um rosto feminino já velho, que podia ser de uma ministra do STF elitista ou de uma senadora direitista.


            O que seria aquela aparição?
            Era, metamorfoseada, uma “naja aschei” do Quênia, conhecida como cobra cuspideira: uma dose de seu veneno pode matar um elefante em meia hora. Uma víbora terrível, como todas as víboras e todos os direitistas.
            Embora o delírio continuasse, me senti bastante forte para pegar meu Kindle e retomar a leitura de “Che: uma biografia”, de Jon Lee Anderson, calhamaço de 900 páginas. E também lúcido para compilar breves trechos que, perdidos naqueles velhos tempos, iluminam o Brasil de hoje, sempre o mesmo, década após década.
            Em alguns casos, atualizei as informações e inseri notas entre colchetes.

            CHARLES DARWIN
            A Argentina [leia Brasil] ficará nas mãos de selvagens brancos em vez de índios de pele cor de cobre. Os primeiros são ligeiramente superiores em instrução, ao mesmo tempo em que são inferiores em todas as virtudes morais.

            JON LEE ANDERSON
            Ao navegar rumo ao Norte, para a América Central, Ernesto [leia Che] sabia que estava prestes a entrar em uma região em que os países não são nações de verdade, mas estâncias particulares, pertencentes a ditadores.

            PERÓN
            O justicialismo peronista, formulado da década de 1940, tinha como objetivo uma comunidade organizada vivendo em harmonia, e sua plataforma era justiça social, independência econômica e soberania política.

            JACOBO ARBENZ
            Em 1952, o presidente Arbens assinou um decreto de reforma agrária na Guatemala, pondo fim ao sistema oligárquico e nacionalizando as propriedades da estadunidense United Fruit, que controlava as “repúblicas das bananas” na América Central. Em 1954 foi derrubado pela CIA e por militares golpistas do país, como sempre acontecia naqueles pequenos países miseráveis e fortemente oligárquicos.

            FRIDA KAHLO
            Em dois de julho de 1954, Diego Rivera empurrou a cadeira de rodas de Frida até um comício contra a derrubada de Arbenz. Em frente ao Palácio de Belas Artes na cidade do México, ela se juntou à multidão que, durante quatro horas, gritou “Gringos assassinos, fora!” [Palavras ao vento, não adiantou nada. Estava com uma pneumonia avançada e morreu 11 dias mais tarde, em 13 de julho, aos 47 anos].

            O JOVEM CHE
            Na cabeça de Ernesto, além do exército, os outros culpados pelo fracasso na Guatemala eram a imprensa e os religiosos fundamentalistas, e mentalmente ele os marcou como setores problemáticos que requeriam atenção especial, se as revoluções socialistas fossem bem-sucedidas em outros lugares no futuro.

            JORGE RICARDO MASETTI
            Após a derrubada do presidente argentino Arturo Frondizi pelas forças armadas, Masetti criou com Guevara, em setembro de 1963, o “Ejército Guerrillero del Pueblo”, com cerca de 30 membros. Em abril de 1964 os guerrilheiros foram presos ou mortos. Segundo o historiador Rodolfo Walsh, “Masetti nunca apareceu. Dissolveu-se na selva, na chuva, no tempo. Em algum lugar desconhecido o cadáver do Comandante Segundo empunha um fuzil enferrujado”.

            GUEVARA, A LEPROSOS PERUANOS
            Acredito, e ainda mais firmemente depois de minha viagem, que a divisão da América Latina em nacionalidades ilusórias é completamente fictícia. Constituímos uma única raça mestiça que, do México ao Estreito de Magalhães, apresenta notáveis similaridades etnográficas. Por isso, em uma tentativa de me livrar do peso de qualquer provincianismo pobre, ergo um brinde ao Peru e à América unida.
            Enfraquecido, larguei o livro e caí de costas. De que vale um punhado de frases diante da realidade espantosa do que foi, é e será a América Latina, enquanto o império estadunidense mandar no mundo? Nada. Apenas um rico quintal no qual ele e seus cúmplices locais [leia a elite dominante] deitam e rolam.
            Enquanto isso, a víbora continuava me encarando. E começou a rir.
(Continua.  -  Fonte: Aqui).

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