domingo, 28 de janeiro de 2018

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO (CAPÍTULO 9)

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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.


O país dos canalhas - Capítulo 9 - O inferno astral de Miguel Temeroso

Por Sebastião Nunes

Fui preso no meu escritório em Brasília, DF, por quatro brutamontes. Enormes, vestidos de couro, me algemaram as mãos e os pés, chutaram minha cara, apertaram meu pescoço com os coturnos ferrados – e eu quieto.

– Cala a boca! – disse o que parecia ser o chefe dos policiais. – Fica calado ou será pior!
Eu nem piava, claro. Fiquei ali deitado, mudo que nem peixe.
Me ergueram pelos ombros e me botaram encostado numa parede. Dois tapas na cara para eu deixar de pensar besteira. E um chute no saco como sobremesa.

MOTIVOS DA PRISÃO
– Ouvimos dizer que você andou espalhando boatos sobre o Temeroso Golpista – disse um sujeito atarracado, que parecia ser o chefe dos interrogadores.
Murro na cara da direita para a esquerda.
– Queremos que você repita aqui tudo o que andou espalhando. Sem mentiras!
Murro na cara da esquerda para a direita.
– Desembucha!
Vi que não tinha saída e resolvi desembuchar.
– Só andei contando o que me contou o porteiro que ouviu contar pelo mordomo que ouviu do chefe de gabinete que ouviu do valet de chambre que ouviu da puta da arrumadeira que ouviu da...
– Cala a boca! – berrou o chefe dos interrogadores. – Chega de boato. Conta o que sabe e não o que ouviu dizer.
– Tá bem – disse eu, resignado. – Vou contar o que me contaram.

ÍNTEGRA DO INTERROGATÓRIO
– Seu nome é Philip Chandler, detetive particular xereta. Está certo?
– Só até detetive particular.
– E o que foi que ficou sabendo?
– Que o Golpista queria pular de madrugada pela janela do segundo andar.
– E o que mais?
– Que a madame golpista disse pra ele deixar de bobagem, que pulando do segundo andar podia no máximo quebrar uma perna.
– E daí?
– Imaginei que ela tinha razões para desencorajá-lo. Primeira razão: além de cuidar de um marido velho, caduco e cardíaco, teria de cuidar de um marido de perna quebrada. Segunda razão: preferia que ele pulasse do quarto andar, que aí ela ficaria viúva, famosa e rica, podendo escolher entre milhares de ansiosos pretendentes sua próxima vítima, perdão, seu próximo marido.
– Até aí concordo com você. E por que ele queria pular?
– Por causa dos pesadelos recorrentes de toda noite.
– E que pesadelos são esses?

OS PESADELOS DE GOLPISTA
– Temeroso tem dois pesadelos principais. No primeiro, ele se vê preso numa masmorra fedorenta com Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Ademar de Barros, os golpistas principais de 1964.
– E por que isso é pesadelo?
– Por que os três se revezam para enrabá-lo sem nunca se cansar.
– De fato é um puta pesadelo. Prossiga.
– No segundo ele se vê num quarto perfumado de motel com Ademar de Barros, Magalhães Pinto e Carlos Lacerda...
– Ué!, mas os personagens são os mesmos!
– Pois é. Só que também no quarto do motel os três se revezam para enrabá-lo.
– Quer dizer que os pesadelos são iguais?
– Iguais, não. O primeiro se passa numa masmorra fedorenta; o segundo num quarto perfumado de motel.
– Fica quieto que vamos confabular.

BRUTAMONTES CONFABULANTES
O que gostava de bater me deu um murro no nariz – o sangue espirrou longe – e outro chute no saco, que me fez ver estrelas.
– Fica quieto aí e não pia – disse ele, se afastando com os parças.
Fiquei quieto sem piar. Começaram a conversar num canto da janela e, à medida que o papo rolava, começaram a rir, a rir cada vez mais alto até não conseguirem parar e explodirem em gargalhadas cada vez mais fortes.
Sem parar de rir, voltaram para o meu lado. As lágrimas desciam pelas caras até as bocas abertas, que engoliam litros de água salgada de tanto que eles riam.
O chefe dos interrogadores me entregou um pedaço de papel higiênico.
– Limpa teu nariz.
Limpei meu nariz.
– Pode continuar espalhando teu boato – disse ele. – Isso não tem nada demais. O tipo de pesadelo que você contou ocorre com todos os golpistas.
– Com todos? – indaguei surpreso.
– Com todos, sim. Existem variantes, mas no fundo são parecidos. Todos os golpistas vivem esse inferno astral. Fingem que estão numa boa, fingem tão completamente que até as madames acreditam.
– E eles nunca pulam pela janela? – indaguei, mais surpreso ainda.
– Não, nunca pulam. Para desespero dos golpistas e das respectivas madames. Esse é o inferno astral deles: passam o resto da vida sendo enrabados pelo passado.  -  (Fonte: Aqui).
(Continua).

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