domingo, 8 de abril de 2018

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO (CAPÍTULO 16)

.
Para ler os capítulos anteriores, clique AQUI.
Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.


O país dos canalhas - Capítulo 16 - A mosca azul ataca novamente!

Por Sebastião Nunes

A febre não cedia nem o delírio. A junta médica que me tratava decidiu que eu fosse internado no Hospital de Base de Brasília, aquele mesmo em que Tancredo Neves foi operado e em que fizeram a baita encenação que, no frigir dos ovos, acabou por apeá-lo da presidência antes da posse. Mas não sou supersticioso; topei.

Me instalaram numa UTI (Último Trem para o Inferno), também chamada de CTI (Cadáver Temporariamente Indisponível), me serviram uma sopa de galinhola, me povoaram de agulha, tubos, líquidos e zumbidos, deixando ao meu lado uma enfermeira com cara de quem comeu e não gostou.

            Não apagaram a luz, mas a reduziram ao lusco-fusco. Diante de meus olhos surgiu uma enorme mosca esverdeada e cabeluda, com pescoço vermelho, asas e patas cinzentas e uma cara conhecida. Quem seria aquele velhusco bem penteado?

            PROEZAS DE UMA MOSCA
            Não tive tempo de lembrar. Quase que imediatamente, o moscão começou a botar grandes ovos pintalgados, lembrando os de codorna silvestre. Só que os ovos eram também cabeludos e de tamanhos desiguais.
            Sabe o que mais? Não tenho certeza nem posso jurar – os delirantes são capazes de infinitas fantasias –, mas me pareceram ovos podres.
            Mais estranhamente ainda, todos os ovos começaram a eclodir assim que foram botados e, de dentro deles, saíram deputados e deputadas, senadores e senadoras, juízes e procuradores, além de ministros variegados.
            Como sei quem era o quê?
            Elementar.
            Os deputados machos empunhavam canetas para reivindicar verbas e, bem ao lado de cada um, via-se enorme container para recolher contribuições em espécie.
            As deputadas fêmeas só variavam na vestimenta, na cabeleira farta e, quando já entradas em anos, nas múltiplas plásticas com que afrontavam as pelancas.
            Senadores e senadoras, como nada tinham para fazer, viviam chapados de pó puríssimo, oriundo com certeza de gabinetes senatoriais.
            Juízes e procuradores se destacavam pelas togas pretas atulhadas de bolsos e os ministros não se destacavam por nada, exceto por grandes e finas mãos de puxar sacos.
            Absurdo? Bobagem: nenhum delírio é absurdo.

            PROEZAS DE UM DELIRANTE
            Como eu também não tinha nada para fazer, que nem nossos senadores, cortei o pescoço de um dos deputados e serrei ao meio seu crânio. Espantoso! Parecia um coco maduro depois que se come a polpa: só tinha casca.
            Fiz o mesmo com uma deputada, com mais dificuldade, é lógico, retardado pela basta cabeleira. Mesmo resultado: só casca.
            Antes de continuar delirando, ocorreu-me uma sutil questão: de onde tiram eles esperteza suficiente para se elegerem de novo e sempre eternamente?
            Com certeza do poema “A mosca azul”, de Machado de Assis, publicado no ano da graça de 1901, hoje mais atual do que nunca. Pois se um velho golpista de quase 80 anos, com apenas 4% de aprovação, sonha em se candidatar à presidência da república, só mesmo picado pela mosca azul, criação imortal do sutilíssimo, sapientíssimo e irônico Machadinho. Ao poema, pois!
            Ah, antes, permitam-se acrescentar que delirando ou não, na UTI ou fora dela, continuarei na próxima semana, prometendo que, assim que esteja curado, voltarei a cuidar dos preparativos para o assalto à Casa da Moeda, se vocês se lembram dos primeiros capítulos de minha grotesca aventura em Brasília.

            A MOSCA AZUL

            Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,/ Filha da China ou do Indostão./ Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada./ Em certa noite de verão.

            E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,/ Refulgindo ao clarão do sol/ E da lua – melhor do que refulgiria/ Um brilhante do Grão-Mogol.

            Um poleá [plebeu] que a viu, espantado e tristonho,/ Um poleá lhe perguntou:/ – "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,/ Dize, quem foi que te ensinou?"

            Então ela, voando e revoando, disse:/ – "Eu sou a vida, eu sou a flor/ Das graças, o padrão da eterna meninice,/ E mais a glória, e mais o amor".

            E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo/ E tranquilo, como um faquir,/ Como alguém que ficou deslembrado de tudo,/ Sem comparar, nem refletir.

            Entre as asas do inseto a voltear no espaço,/ Uma coisa me pareceu/ Que surdia, com todo o resplendor de um paço,/ Eu vi um rosto que era o seu.

            Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,/ Que tinha sobre o colo nu/ Um imenso colar de opala, e uma safira/ Tirada ao corpo de Vixnu.

            Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,/ Aos pés dele, no liso chão,/ Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,/ E todo o amor que têm lhe dão.

            Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,/ Com grandes leques de avestruz,/ Refrescam-lhes de manso os aromados seios./ Voluptuosamente nus.

            Vinha a glória depois; – quatorze reis vencidos,/ E enfim as páreas triunfais/ De trezentas nações, e os parabéns unidos/ Das coroas ocidentais.

            Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto/ Das mulheres e dos varões,/ Como em água que deixa o fundo descoberto,/ Via limpos os corações.

            Então ele, estendendo a mão calosa e tosca./ Afeita a só carpintejar,/ Com um gesto pegou na fulgurante mosca,/ Curioso de a examinar.

            Quis vê-la, quis saber a causa do mistério./ E, fechando-a na mão, sorriu/ De contente, ao pensar que ali tinha um império,/ E para casa se partiu.

            Alvoroçado chega, examina, e parece/ Que se houve nessa ocupação/ Miudamente, como um homem que quisesse/ Dissecar a sua ilusão.

            Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,/ Rota, baça, nojenta, vil/ Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela/ Visão fantástica e sutil.

            Hoje quando ele aí cai, de aloé e cardamomo/ Na cabeça, com ar taful/ Dizem que ensandeceu e que não sabe como/ Perdeu a sua mosca azul.

(Continua.  Fonte: Aqui).

Nenhum comentário: