quinta-feira, 8 de março de 2018

A CLASSIFICAÇÃO DA VIDA


Reinos, domínios e a árvore da vida

Por A. P. L. Costa

No tempo de Aristóteles (384-322 a.C.), os objetos do mundo natural eram arranjados em três ‘reinos’: o animal, o vegetal e o mineral. O próprio Carl von Linné (1707-1778) – ou simplesmente Lineu –, o naturalista sueco que estabeleceu as bases da nomenclatura biológica, adotou uma classificação dicotômica: animais vs. vegetais – o que não cabia em um reino tinha forçosamente de caber no outro.
A perspectiva dicotômica permaneceu hegemônica até meados do século 19, quando começaram a surgir sistemas de classificação que buscavam refletir a história da vida. O mais conhecido deles foi o do naturalista alemão Ernst [Heinrich Philipp August] Haeckel (1834-1919). O sistema genealógico de Haeckel reconhecia três reinos: o dos animais, o dos vegetais e o dos protistas. Este último abrigava grupos ‘problemáticos’, como as esponjas e os fungos, além dos micro-organismos conhecidos na época.
Um sistema verdadeiramente moderno só apareceria no século 20. Em 1938, o biólogo estadunidense Herbert F. [Faulkner] Copeland (1902-1968) publicou em artigo uma versão inicial de um sistema de quatro reinos. Em 1956, ele publicou uma versão revisada contendo então os seguintes reinos: Mychota (= Monera; bactérias, extraídas dos ‘protistas’ de Haeckel, incluindo as cianobactérias), Protoctista (= Protista; protozoários, a maioria das algas e fungos), Plantae (embriófitas e algas verdes) e Animalia (animais).
Em 1969, tendo o sistema de Copeland como ponto de partida, o biólogo estadunidense Robert H. [Harding] Whittaker (1920-1980), publicou um sistema de classificação no qual os seres vivos estão arranjados em cinco reinos. Teríamos então moneras (bactérias), protistas, fungos (extraídos dos ‘protoctistas’ de Copeland), animais e plantas. Com algumas modificações, o sistema de Whittaker continua de pé, embora tenham surgido algumas outras propostas e uma delas possa vir a substituí-lo.
A despeito das diferenças, os sistemas de Copeland e Whittaker estão assentados sobre o mesmo princípio: há uma dicotomia fundamental na história da vida – procariontes vs. eucariontes – e isso deveria estar retratado nos sistemas de classificação.
Falsa dicotomia
Em 1977, após cerca de 10 anos de trabalho duro, Carl R. [Richard] Woese (1928-2012)e George E. [Edward] Fox (nascido em 1945) divulgaram as primeiras evidências em defesa de um modelo radicalmente novo para a árvore da vida. Segundo eles (tradução livre):
Dividir o mundo vivo em Prokaryotae e Eukaryotae tem servido, antes de tudo, para obscurecer o problema sobre quais agrupamentos atuais representam os diversos ramos primordiais provenientes da linha de descendência comum. A razão é que eucarioto/procarioto não é primariamente uma distinção filogenética, embora geralmente seja tratada como tal. [...] Apesar de marcantes, essas diferenças de organização não garantem que eucariotos e procariotos representem extremos filogenéticos.
Na opinião dos dois, os sistemas até então propostos estariam assentados em uma falsa premissa. O modelo deles era tripartite, chocando-se contra a ideia de dicotomia entre procariontes e eucariontes. O terceiro ramo abrigaria as arqueias (chamadas inicialmente de arqueobactérias), um grupo de seres procariontes até então tratados como bactérias. A árvore da vida teria assim três ramos fundamentais, dois dos quais abrigariam procariontes (bactérias e arqueias). Curiosamente, porém, o novo modelo passou despercebido, ou foi convenientemente ignorado por boa parte da comunidade acadêmica.
Em 1990, Woese e colegas (Woese et al. 1990) apresentaram uma proposta formal de classificação, segundo a qual a diversidade biológica da Terra poderia ser organizada em três domínios: Archaea (inicialmente Archaebacteria), Bacteria e Eukarya (anteriormente Eucarya). O alvoroço dessa vez foi grande. Ernst Mayr (1904-2005), por exemplo, desdenhou da proposta, iniciando uma acirrada polêmica com Woese. Lynn Margulis (1938-2011), após uma forte rejeição inicial, terminou adotando uma posição mais conciliatória.
Uma nova árvore da vida
A proposta de Woese et al. (1990) ganhou adeptos e conseguiu se firmar. A ideia de que bactérias e arqueias constituem linhagens distintas e que, portanto, não devem ser mantidas juntas em um mesmo táxon, em contraposição aos eucariontes, já faz parte da literatura corrente. A relação entre os três domínios (bactérias, arqueias, eucariontes), no entanto, ainda é um assunto controverso.
Algumas análises indicam que as arqueias e os eucariontes seriam ‘grupos irmãos’, pois ambos teriam surgido a partir de um ancestral único comum. Nesse caso, eles seriam taxonomicamente equivalentes, conforme o modelo de três domínios dá a entender. Outras análises, no entanto, produzem resultados diferentes. Uma das alternativas sustenta que os eucariontes teriam surgido a partir de um grupo de arqueias. Nesse caso, as arqueias e os eucariontes não seriam grupos irmãos e o modelo de três domínios teria de ser modificado.
Qualquer que seja o modelo que venha a prevalecer (dois, três ou mais domínios), cabe aqui registrar um aspecto curioso dessa história: a constatação de que as arqueias representam uma linhagem distinta, e não apenas um subgrupo de bactérias, foi um grande achado. Como vimos antes, o objetivo inicial da pesquisa de Woese era construir um amplo e detalhado banco de dados visando inferir os primórdios da vida celular no planeta. As arqueias meio que apareceram durante o desenvolvimento da pesquisa.
Em 1976, por sugestão de um colega de universidade, o microbiologista Ralph S. [Stoner] Wolfe (nascido em 1921), pioneiro no estudo da metanogênese, Woese incluiu em sua pesquisa um obscuro grupo de procariontes produtores de gás metano. Os resultados foram surpreendentes: os micro-organismos – referidos hoje como ‘euriarqueias metanogênicas’ – tinham uma assinatura genética distinta, indicando que arqueias e bactérias, a despeito de ocasionais ‘semelhanças morfológicas’, pouco têm em comum.
Tão logo Woese e colaboradores perceberam que haviam feito uma grande descoberta, \pesquisas específicas sobre aqueles surpreendentes micro-organismos foram iniciadas. A notícia se espalhou e, como acontece nesses casos, outros estudiosos passaram a se interessar e a conduzir suas próprias pesquisas. E, desde então, a microbiologia não foi mais a mesma...
Comendo amendoins e especulando
Embora as discussões em torno da questão ‘dois ou três domínios?’ não tenham nada de trivial, a descoberta das arqueias teve outros desdobramentos. Vale lembrar, por exemplo, que até então não havia um sistema de classificação que refletisse a história evolutiva dos micro-organismos. Não era muito difícil reconhecer gêneros distintos – diferenciar, digamos, uma cianobactéria do gênero Nostoc de uma espiroqueta do gênero Treponema ou uma flavobactéria do gênero Bacteroides de uma clamídia (Chlamydia) –, mas ninguém sabia ao certo quão próximas ou quão distantes, em termos evolutivos, tais linhagens estariam entre si.
Já no final da década de 1960, os autores de um renomado livro-texto, Mundo dos micróbios, afirmavam que a história evolutiva das bactérias jamais seria reconstruída. O livro adotava um sistema de três reinos, animais, vegetais e protistas, sendo que este último era subdividido informalmente em dois grupos, os protistas ‘inferiores’ (bactérias) e os ‘superiores’ (algas, protozoários, fungos). Obter uma classificação natural dos ‘protistas inferiores’ era algo impensável.
Segundo os autores (Stanier et al., 1969, p. 398; grafia original):
Em muitos grupos grandes de plantas superiores e animais, o desenvolvimento de uma classificação natural detalhada é relativamente fácil porque há tantas linhas de evidência indicando relações evolutivas: homologias de estruturas e desenvolvimento e, freqüentemente, um extenso registro fóssil. [...] O problema de inferir relações naturais se torna, conseqüentemente, mais agudo quando chegamos aos protistas inferiores. Todos êstes organismos compartilham das propriedades estruturais características associadas à célula procariótica [...] e podemos, assim, inferir com segurança uma origem comum para o grupo todo num passado evolutivo remoto; podemos também discernir quatro subgrupos principais, as algas verde-azuladas, mixobactérias, espiroquetas e eubactérias, que parecem ser diferentes entre si [...]. Além dêste ponto, porém, qualquer tentativa sistemática de construir um esquema pormenorizado de relações naturais se converte na mais pura especulação, completamente infundada por qualquer tipo de evidência. A única conclusão possível é, pois, que a finalidade primordial da classificação biológica não pode ser atingida no caso das bactérias.
Cabe ressaltar que, no início de sua carreira, o influente microbiologista canadense Roger Y. [Yate] Stanier (1916-1982), principal autor da obra, defendia exatamente o contrário. Ao longo dos anos, ele mudou de opinião, a ponto de fazer o seguinte comentário (apud Woese 1987, p. 223; tradução livre):
Especulação evolutiva constitui um tipo de metaciência, tendo sobre alguns biólogos o mesmo fascínio intelectual que a especulação metafísica tinha sobre alguns escolásticos medievais. Isso pode ser considerado um hábito relativamente inofensivo, como comer amendoins, a menos que adquira a forma de uma obsessão, quando então se torna um vício.
Não sei se Carl Woese gostava ou não de amendoins, mas acredito que ele não teria provocado a revolução que provocou se não estivesse imbuído de um ‘obsessivo interesse’ por ‘especulações evolutivas’.
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[Nota: adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), obra que tem Carl R. Woese, Ernst Mayr e Lynn Margulis como três dos 14 personagens principais e onde detalhes adicionais podem ser encontrados; para informações a respeito do livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]  -  (Fonte: AQUI).
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"Hoje a teoria de Woese não é já oficial? Todos os livros que tenho lido a esse respeito já a tomam como base, de um modo ou de outro (mesmo que não considerem que os eucariotas sejam grupos irmãos das bactérias e das arqueias, mas produto da simbiose desses outros). Mas sempre considerando arqueias e bactérias como domínios diferentes. E ao que parece hoje se usa mais a história evolutiva das proteínas e de outras moléculas para tratar dos fios evolutivos. Também tenho lido muito sobre o fato de, no início, haver muito cruzamento horizontal (a palavra não é essa, está me escapando), de modo que não seria possível chegar a uma origem única, mas no máximo a um "anel" de espécies, só posteriormente a coisa se aproximando mais de uma estrutura de árvore."  -  (Comentário da leitora cognominada Anarquista Lúcida).

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