segunda-feira, 13 de novembro de 2017

CONCEPÇÕES SOBRE CIÊNCIA

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."Acho que seria bom estudar um pouco de Dmitri Ivanonic Mendeleiev, considerado um dos maiores gênios da humanidade."
O comentário acima, de um leitor do Jornal GGN, permite entrever as reservas com que, em geral, as teses defendidas por Gustavo Gollo são recebidas, mas não se pode desconhecer o mérito do articulista em agir continuamente em busca de novas proposições, sejam elas especulativas ou não. 
(A propósito, o russo Mendeleiev, citado pelo leitor, foi o criador da primeira versão da Tabela Periódica dos elementos químicos, prevendo as propriedades daqueles que ainda não haviam sido descobertos - aqui).
Nota: Um outro leitor ofereceu uma 'movediça' (mas aparentemente pertinente) definição de Ciência: 
"O conjunto de nossas melhores teorias sobre a realidade, todas elas provisórias. Sempre que uma teoria melhor é encontrada, a antiga é descartada.
O que distingue uma teoria boa de uma ruim é a maior capacidade preditiva da primeira.
Isso vale para todas as áreas do conhecimento."



Cinco concepções de "ciência"

Por Gustavo Gollo

A palavra “ciência” tem sido utilizada na vida comum, e por cientistas, de maneiras bastante equívocas, designando atividades muito diversas que, melhor seria, fossem referidas com nomes analogamente diferenciados. A designação comum sugere a existência de um modo de conhecimento, a ciência, dividida nas diversas áreas, o que considero um equívoco. Penso que as diversas atividades abarcadas pelo mesmo nome “ciência” constituem, de fato, práticas de tipos muito diferenciados, como mostrarei.
Física​
O que distingue a física de outras ciências é seu imenso poder profético. Essa palavra é certamente herética, causa desconforto, e se encontra em desuso. Sua aplicabilidade ao caso, no entanto é inquestionável. Já no século XVII os trabalhos de Newton permitiam inferir previsões bastante precisas sobre o futuro de sistemas físicos, capacidade ampliada a extremos com os desenvolvimentos obtidos por Laplace, no século seguinte. Assim, há mais de 3 séculos os físicos dominam, com precisão surpreendente, a arte de prever o futuro.
De acordo com Karl Popper, é exatamente esse potencial que define a ciência. Teorias científicas, segundo ele, são aquelas que permitem inferências testáveis. Segundo ele, embora nada possa garantir a veracidade de uma teoria, a previsão de um fato inusitado tende a fortalecer imensamente nossa convicção na teoria. Assim, a confirmação da estranha profecia de Einstein de que as estrelas pareceriam deslocadas de suas posições quando observadas nas proximidades do sol, durante um eclipse, causou completa estupefação, embora não tivesse sido esse o primeiro, nem o maior feito conseguido através dessa nova forma de magia, a física. Várias décadas antes, a descoberta de Netuno, profetizada através de cálculos baseados na teoria de Newton, já havia assombrado a todos, revelando que a ciência, uma nova forma de ver o mundo, podia propiciar, efetivamente, a capacidade de desvendar fatos completamente desconhecidos.
Atentem para a enormidade do feito: sentado em sua escrivaninha, um físico efetuou certos cálculos, com os quais deduziu a existência de um planeta até então desconhecido. Tendo terminado as contas, e sem ao menos olhar para o céu, vaticinou o mago: apontem seus telescópios para tais coordenadas e descobrirão lá um novo planeta! E assim, em 1846, baseado apenas em teoria e cálculos, sem o auxílio de nenhuma observação, foi descoberto o planeta Netuno. Isso é física! Será a palavra “profecia” inadequada a tal maravilha?
Até então, era perfeitamente aceitável duvidar dos cientistas. Saboreie o assombro de considerar que cálculos no papel possam ter informado a existência de um planeta desconhecido. Aos olhos dos de então, era como se Newton e Laplace houvessem perscrutado a mente de Deus, descobrindo seus desígnios.
Assombros posteriores, como a distorção do espaço causada pela massa do sol, confirmada pelo deslocamento aparente das estrelas durante os eclipses, não puderam ter o apanágio da primazia propiciada pela descoberta de Netuno.
O ideal de ciência proposto por Popper, de teorias refutáveis, corresponde quase exclusivamente à física. Apenas os físicos têm conseguido executar magias tão assombrosas como as descritas acima, descobrindo, através de cálculos e raciocínios, eventos absolutamente surpreendentes. Podemos torcer, no entanto, que a teoria dos replicadores propicie, em breve, algo comparável.

Química
Em 1934, Popper causou surpresa ao defender a indemonstrabilidade das ciências empíricas. Contrariamente a toda a expectativa da época, retomando a crítica de David Hume, assegurou que as teorias científicas empíricas não podiam ser provadas.
Por essa época, a química já estava bem estabelecida, baseada no conceito de átomo, consolidado pouco tempo antes.
Mais do que isso, a química já estava sendo implementada a pleno vapor, permitindo a fabricação de inúmeras substâncias novas, portadoras de propriedades surpreendentes e diversas.
Nesse contexto, a alegação de filósofos de que teorias científicas não podiam ser provadas, eram recebidas com absoluto desdém pelos químicos, capazes de exibir, em seus laboratórios, uma vasta multiplicidade de produtos formulados por eles, fato que, a seus olhos, constituía cabal demonstração científica.
Ocorre que a química corresponde, muito mais, a uma tecnologia que a uma ciência. Químicos se empenham em formular e produzir substâncias. Os maiores frutos do trabalho dos químicos surgem na forma de substâncias, produtos de seu conhecimento. A preocupação, entre os químicos, de conhecer o mundo, de desvendar seu funcionamento, é bastante marginal, secundária. Tal preocupação seria, provavelmente, mais própria dos físicos moleculares. Os esforços dos químicos, de fato, se dirigem fundamentalmente à confecção de produtos, o que os torna assemelhados a engenheiros, e classifica a química mais como um ramo tecnológico do que como um conhecimento científico.
Cientistas almejam compreender o mundo, tecnologistas buscam dominá-lo. O resultado fundamental do trabalho de um químico é uma substância patenteável, uma tecnologia. Considerando-se a distinção entre ciência e tecnologia, creio que uma parte quase irrisória da química se candidataria ao status de ciência.
Biologia
Em certo sentido, essa ciência corresponde a um saco de gatos, havendo muita diversidade entre as várias abordagens efetuadas por biólogos. Assim, taxonomistas fazem um trabalho fundamentalmente descritivo, enquanto biólogos moleculares tendem a agir como químicos, e ecologistas fazem trabalho de campo, descrevendo e relacionando interações entre as espécies.
A visão comum de ciência, a imagem que as pessoas fazem de um cientista ao microscópio, fazendo observações em seu laboratório tentando, desse modo, desvendar o mundo, talvez se assemelhe ao trabalho de zoólogos, botânicos e de várias outras especialidades biológicas. Nem físicos nem químicos agem, fundamentalmente, do modo padrão imaginado comumente.
Penso que um ecologista que tentasse extrapolar seus conhecimentos para o mundo inanimado acabaria fazendo geologia, caso dirigisse seu interesse a objetos próximos, ou astronomia, se se interessasse por seres distantes. Creio haver similaridades entre esses modos de conhecimento. Penso que agindo assim, o ecologista nunca faria física, uma vez que essa ciência constitui um modo de conhecimento completamente distinto do seu, não apenas por enfocar uma área diferente, mas, fundamentalmente, por almejar propósitos diferentes. Biólogos costumam partir de observações para alcançar suas conclusões descritivas; físicos formulam sonhos, ficções posteriormente testáveis.
Assim, em função de sua metodologia, a biologia pode ser agrupada com a geologia, astronomia, paleontologia, arqueologia e outras. Creio que as disciplinas desse grande grupo, diferem apenas quanto à área enfocada por cada uma. As análises de Thomas Kuhn se aplicam aos desenvolvimentos de todo esse grupo, enquanto Popper excluiria todas elas do domínio científico. Tal constatação pode sugerir a esse grupo o rótulo de “ciências normais”, consonante à nomenclatura kuhniana.
Ressalte-se que partes da biologia não se incluem aí, como a biologia molecular, um ramo tecnológico mais aparentado com a química, e os estudos sobre evolução. A palavra “teoria” presente na expressão “teoria da evolução” sugere fortemente uma tentativa de estruturação presente apenas nas teorias físicas. Darwin tentava ver o mundo de maneira estruturada, tendo sido esse seu grande legado, desprezado em larga medida por seus sucedâneos, retomado, apenas, mais de um século depois, por Richard Dawkins.

Matemática
Pode-se pensar, ingenuamente, que o resultado das operações matemáticas, seja justificado de maneira empírica, mostrando-se, por exemplo, que 2 dedos somados a 2 dedos resultem em 4 dedos. No entanto, embora se suponha que os dedos possam exemplificar tal operação, não podem justificá-la.
Suponha, por exemplo, que alguém alegasse:
Pedro tinha 1000 balas,
ganhou mais 2000 balas,
ficou, então, com 2999 balas.
Sabendo que diferentemente do informado, o resultado de tal operação é 3000 balas, ninguém acreditaria na descrição acima, supondo, obviamente, ter havido algum tipo de erro. Sabendo-se o resultado de uma dada operação, exige-se que esse mesmo resultado se imponha em todas as situações equivalentes. Uma contagem diferente da esperada, como a apresentada acima, não evidenciaria alguma espécie de “distorção matemática”, mas um furto, ou outro erro.
A matemática transcorre, toda ela, no mundo da linguagem
Tradicionalmente, essa ciência costuma ser segregada das demais e reunida com a lógica sob o rótulo “ciências formais”, em contraposição às ciências empíricas.
Ciências humanas
As humanidades têm sido agrupadas junto com as ciências com o propósito de angariar o status adquirido pelas outras. Embora constituam um saco de gatos, incluindo certa diversidade, o grosso das humanidades constitui um discurso fluido e fundamentalmente subjetivo. Tais características sugerem a eliminação da palavra “ciência” em sua designação, sendo mais apropriada, provavelmente, a designação “humanidades”, para os atuais conhecimentos sociológicos, políticos, psicológicos e outros.
Deve-se salientar que um enorme desenvolvimento está em vias de ocorrer nas análises de dados, uma forma de estudo baseada em estatística e métodos computacionais. Esse deverá ser o primeiro grande trunfo da inteligência artificial e alterará drasticamente o conhecimento sobre a humanidade. Esse modo de conhecimento transbordará e se espraiará sobre todas as áreas do conhecimento, mesclando-se com todas as modalidades desenvolvidas atualmente. Embora drasticamente diferente das abordagens humanísticas tradicionais, esse modo de conhecimento englobará, muito rapidamente, todas essas áreas.
Creio que cada um dos 5 modos de conhecimento considerados acima, distinguem-se nitidamente uns dos outros, muito mais em decorrência do uso de metodologias próprias, que pela diferenciação entre as áreas.
Assim, vejo a química entre as tecnologias, a biologia entre as ciências normais, a matemática entre as ciências formais, e a sociologia entre as humanidades. Não sei que rótulo seria o mais apropriado à física e outros modos de conhecimento estruturados sobre teorias. Minha preferência pessoal ficaria com “ciências proféticas”, proposta pouco palatável para a maioria, tenho certeza. “Ciências popperianas” seria adequado, também “ciências testáveis”. Teria forte apelo a designação “ciências revolucionárias” adequada à física e demais ciências estruturadas sobre teorias passíveis de refutação e substituição teórica, em bloco, e correspondendo à nomenclatura kuhniana. Popper acusava a expressão de pleonástica.
Quaisquer que sejam os nomes utilizados para distinguir esses modos de conhecimento, serão úteis para enfatizar a distinção entre práticas tão diferenciadas.  -  (AQUI).

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