segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O JORNALISMO E A MORTE DO REITOR CANCELLIER

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Este blog publicou alguns posts sobre a trágica morte do reitor Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina, ocorrido recentemente. Enquanto a OAB Nacional divulgou nota de repúdio, a grande imprensa brasileira, unanimemente, limitou-se a tratar o suicídio do reitor como ato desesperado de alguém com 'culpa no cartório', descartando  o acionamento do requerido jornalismo investigativo (alternativa fora do alcance da 'blogosfera'), que certamente traria à tona as reais circunstâncias do caso e os juízos de valor externados por estudiosos do Direito e outros. A Folha de S. Paulo seguiu a 'corrente impassível', comportando-se burocraticamente, como se convicta de que eventuais omissões poderiam ser 'compensadas' pela mea culpa global semanalmente oferecida por sua ombudsman. Mas há quem considere que esse assunto tem potencial para ocupar lugar relevante na História...


Jornalismo de ouvidos moucos

Por Paula Cesarino Costa, ombudsman da Folha de S.Paulo

O corpo no chão do shopping tornou-se trágico sinal de alerta.
A aceitação passiva do discurso policial, o açodamento na busca de culpados por desvios, a imperícia nas técnicas elementares de reportagem e a irresponsabilidade de agentes públicos contribuíram para a morte de cidadão privado do direito à presunção da inocência.
Por mais incisiva e rigorosa que seja a autocrítica da cobertura da imprensa na acusação e morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, já se terá mostrado tardia, insuficiente e assustadora do viés punitivo de algumas das principais instituições sociais do país.
É preciso reconstituir o episódio. No caso da Folha, o jornal mantém à disposição do leitor a seguinte notícia : "Reitor da UFSC é preso em operação que apura desvio de verba em cursos". A abertura do texto diz: "A Polícia Federal prendeu o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, e outras seis pessoas ligadas à instituição nesta quinta-feira (14/09). Segundo a PF, o grupo é suspeito de desviar recursos que deveriam ser investidos em programas de Educação a Distância."
Só no parágrafo seguinte esclarece que o reitor é, na realidade, suspeito de tentar barrar investigações.
A pedido de delegada da Polícia Federal que preside o inquérito, uma juíza que atuou em casos da Operação Lava Jato determinou a prisão de Cancellier e a sua proibição de entrar no campus. A operação foi batizada de "Ouvidos Moucos".
Em depoimento, o reitor negou que tentasse barrar a apuração. Ficou preso um dia. Em artigo, escreveu que se sentia perplexo e amedrontado, submetido a humilhação e vexame sem precedentes. (Nota deste blog: Uma das humilhações: na penitenciária, ter de ficar despido, não se sabe ao certo por quanto tempo). 
Menos de 20 dias depois, Cancellier se atirou do alto da escada rolante de shopping, em Florianópolis. No bolso, um bilhete: "A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!"
Em sua versão eletrônica, a reportagem de setembro tem hoje um sinal de Erramos, produzido 23 dias depois de sua publicação: "A reportagem deixou de informar que o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, era investigado por suspeita de interferir na apuração sobre o desvio de recursos na universidade, e não pelo desvio em si".
A admissão do erro foi direta, mas insuficiente e demorada.
Em 7 de outubro, o jornal publicou reportagem que afirmava que, em carta enviada em julho à Polícia Federal, o corregedor da UFSC disse que vinha recebendo "os mais diversos tipos de pressão por não aceitar ser subserviente ao gabinete do reitor" da instituição. O advogado do reitor contrapunha que Cancellier agira dentro da lei e buscava informar a Capes sobre o episódio.
O editor do núcleo de Cidades, Eduardo Scolese, explicou que, sem correspondente em Florianópolis, as informações da primeira reportagem haviam sido apuradas por telefone e e-mail, sem contestação.
Não se trata aqui de discutir se o reitor estava de fato fazendo ouvidos moucos aos pedidos da polícia ou tentando interferir na investigação. O que interessa é refletir sobre a maneira como a mídia tem lidado com operações policiais que buscam holofotes em investigações ainda em andamento.
As reportagens de diferentes veículos eram quase iguais, feitas exclusivamente com base em poucas e confusas informações divulgadas pela Polícia Federal. Não identifiquei nenhum órgão de imprensa que tenha levantado inconsistências ou ao menos tentado relativizar as acusações apresentadas.
Esse comportamento não é exclusivo desse caso. Tem sido rotineiro diante de tantas investigações.
Questionei o secretário de Redação Vinicius Mota sobre a forma como o jornal vem abordando investigações recentes: "A Folha se preocupa, como está em seus documentos públicos, em não ser veículo involuntário de injustiças contra pessoas ou empresas. Para isso se compromete com protocolos como a necessidade de ouvir e destacar o outro lado e a correção explícita de erros detectados, como foi feito nesse caso", respondeu.
O ambiente punitivo nascido da espetacularização da ação policial e dos procedimentos judiciais tem reflexos e responsabilidade da imprensa. Jornais e jornalistas não podem aderir a ondas nem de condenação de acusados nem de ataque aos investigadores. Precisam refletir sobre seu trabalho, reavaliar as ferramentas de controle, insistir na busca do relato jornalístico mais preciso e plural.
Certo comportamento de manada, em que um faz algo porque outro fez, deve ser vigiado e combatido.
Em alguns momentos, é preciso ter coragem para publicar. Em outros, a ousadia de não publicar.  -  (Aqui).

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