sábado, 14 de outubro de 2017

A PULGA MACHADIANA NUM TEMPO DE VELHAS DELAÇÕES


A velha pulga atrás da orelha de Machado de Assis

Por Sebastião Nunes

“Ia eu a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Mata-Cavalos, o mês novembro, o ano é um tanto remoto, mas não quis trocar as datas de minha vida só para agradar as pessoas que não amam histórias velhas; o ano era o de 1857.

– Dona Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

– Que dificuldade?
Dona Glória quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
– A gente do Pádua?

A DELAÇÃO DE JOSÉ DIAS
“– Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
– Não acho. Metido nos cantos?
– É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos; parece-lhe que todos têm a alma cândida...
– Mas, senhor José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade. Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze a semana passada; são duas criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; dali vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer...? Mano Cosme, você que acha?
Tio Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações de José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”.
– Sim, creio que o senhor está enganado.
– Pode ser, minha senhora. Oxalá tenha razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar...
– Em todo caso, vai sendo tempo – interrompeu a mãe de Bentinho. – Vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes.
– Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o Império...

OJERIZAS CLERICAIS
“– Governou como a cara dele! – atalhou Tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.
– Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
– Você o que quer é um capote; ande, vai buscar o gamão. Quando ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missas atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?
– É promessa, há de cumprir-se.
– Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... não sei... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?
– Verdade é que cada um sabe de si – continuou Tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isso é coisa de lágrimas?
Minha mãe assou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que Tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: “Prima Glória! Prima Glória!” José Dias desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo. Um dever amaríssimo...”.

A PULGA QUE PULA
– Não me fiz padre, e deu no que deu – dizia Dom Casmurro falando às paredes. – Antes houvesse cumprido o destino traçado pela promessa de minha mãe.
Na casa da Rua de Mata-Cavalos o Solitário lembrava o passado e cuidava para que a dor, de mão com a saudade, não o esmagasse.
– Não me fiz esperto, e deu no que deu – repetia Machado de Assis, pensando que seu destino e o de sua criatura terminavam por confundir-se.
Lado a lado, na parede os retratos de Capitu, Escobar, Carolina e do português desconhecido, abandonado do outro lado do Atlântico, aquele que sempre botava uma pulga saltitante atrás da orelha do velho escritor, riam na sua cara.
Machado e Dom Casmurro não se importavam com as risadas.
– Bons tempos – lamentou-se o Velho Bruxo –, em que as delações premiadas não passavam de mexericos sobre namoros infantis.
– Ótimos tempos – ecoou Dom Casmurro, e fechou-se em copas.  -  (Aqui).

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