sábado, 12 de agosto de 2017

APOCALYPTO



"Apocalypto": como explicar o fim da civilização maia?


Por Wilson Ferreira

Muitas vezes encontramos verdades no pensamento conservador. Apenas que elas estão invertidas. Um exemplo é “Apocalypto” (2006). Dirigido por um conservador assumido, o ator Mel Gibson, o filme quer mostrar como foi possível a civilização maia, que alcançou sofisticado conhecimento em Astronomia, Matemática, Artes e Arquitetura, ter se extinguido muito tempo antes da chegada dos espanhóis na América. A hipótese mais aceita é a ecológica (esgotamento dos recursos naturais e mudanças climáticas), que o filme partilha ao acompanhar um protagonista que teve sua tribo destruída e foi levado prisioneiro para a capital maia para sacrifício em um ritual sangrento para entreter as massas. Na capital maia encontramos seca e doenças. A ignorância e amoralidade poderiam ter levado à decadência. Mas também à dominação e escravidão. Luta de classes custa caro e pode exaurir uma sociedade. Esse é o surpreendente viés aberto por Mel Gibson a partir de um pressuposto conservador em “Apocalypto”.
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No livro Antropologia do Cinema (Brasiliense, 1987), a certa altura o pesquisador italiano Massimo Canevacci afirma que muitas vezes encontramos verdades na Direita. Apenas que estas se apresentam invertidas. Canevacci faz alusão ao método de Marx de inverter o idealismo hegeliano, para colocá-lo com os pés no chão – o materialismo histórico.

Pelo menos no caso do diretor e ator Mel Gibson, parece ser verdade. Gibson, um conservador católico declarado e filho de um notório negador do Holocausto (Hutton Gibson), foi duramente criticado pelo filme A Paixão de Cristo (2004) por se tratar supostamente de um filme religioso “antissemita” e “extremamente brutal”.

O filme posterior, Apocalypto (2006), já inicia com uma epígrafe do historiador conservador norte-americano Will Durant: “Uma grande civilização não pode ser conquistada por fora, antes de ser destruída por dentro”. Ao lado de outro historiador, Leo Strauss, são pesquisadores cujas ideias foram associadas à política externa neoconservadora da Era Bush, cujas obras combatiam o relativismo multiculturalista da antropologia.

Isto é, através de um Direito Natural, encontrar uma referência filosófica que permita juízos sobre culturas diversas no tempo e no espaço – logicamente, a supremacia do “juízo” da democracia norte-americana sobre todas as outras culturas e países. Ou seja, o Direto Natural se sobrepondo ao Direito Positivo: a busca daquilo que é universalmente correto e justo, acima das regras e normas vigentes em um país ou cultura.

Uma história universal


Em Apocalypto, Gibson quer narrar uma história supostamente universal: o final de uma civilização – as guerras frequentes entre tribos e cidades-estado, o desespero das elites por colheitas prósperas e o sacrifício serial de corpos e cabeças decepadas como sangrentos rituais para aplacar a fúria do Deus Sol. E por fim, a chegada das caravelas dos conquistadores espanhóis no século XVI, para encontrar uma cultura já devastada e submetê-la.


Como uma civilização conhecida pelos avançados conhecimentos astronômicos, matemáticos e arquitetônicos foi capaz de se autodestruir? Para Gibson, acompanhando a epígrafe de Durant, o grande responsável foram os excessos de uma civilização que quando chegou ao ápice esgotou os recursos naturais ao mesmo tempo em que se apegava a deuses pagãos para justificar a violência e a dominação. Isto é, por não respeitar os verdadeiros valores universais que fundamentariam uma sociedade.

Gibson, assim como Durant, aborda um tema universal: por que as civilizações crescem, chegam ao ápice, para depois decaírem? Mas a resposta é invertida, idealista e moralista: a culpa são os “valores”, ou melhor, a falta deles.

Apocalypto aborda essa indagação em uma narrativa altamente convencional, no clássico clichê do que melhor o cinema norte-americano faz: filmes de perseguição - de carros, aviões, trens e, no caso desse filme, a pé, correndo pelas selvas da América Central.

Porém, mesmo nessa narrativa simplista, igual a centenas de filmes hollywoodianos, a virtude do roteiro assinado por Gibson e Farhad Safinia é explorar argumentos que permitem reverter e “colocar de pés no chão” essa visão moralista e conservadora: mais do que desrespeito a valores morais universais e humanistas, a civilização maia criou uma perversa estrutura social que se autoconsumiu pela dominação, exploração e escravidão.

Também igualmente interessante é o viés gnóstico da reversibilidade simbólica do Mal que caracterizaria a evolução humana: como o avançado conhecimento científico, estético e teológico de uma civilização se reverteu no seu oposto – obscurantismo, violência, guerras e, no final, autodestruição.


O Filme


Apocalypto foi filmado em uma escala épica em selvas verdadeiras e ruínas maias reais da América Central.

Se em A Paixão de Cristo os personagens falavam o aramaico bíblico, em Apocalypto todas as linhas de diálogo são faladas em um dialeto maia com legendas em inglês, e com um grupo de atores desconhecidos. Pelo menos para o grande público dos filmes hollywoodianos.

O filme acompanha um jovem chamado Pata-de-Jaguar (Rudy Youngblood), membro de uma tribo pacífica que vive em harmonia com a selva, cuja aldeia repentinamente é atacada por um grupo fortemente armado de guerreiros maias. Eles matam e estupram indiscriminadamente, incendiando toda a aldeia. Os sobreviventes são feitos prisioneiros para serem levados como escravos.

Pata-de-Jaguar ainda tem tempo de esconder sua esposa grávida e seu pequeno filho em um buraco, livrando-os da chacina. Mas ele também é feito prisioneiro e condenado a marchar junto com os outros em direção à capital maia.

Depois de uma sofrida e perigosa caminhada, chegam à metrópole para encontrar uma civilização em plena decadência: as plantações dizimadas pela seca, doenças, centenas de crianças órfãs e miseráveis, e milhares de escravos revestidos de pó construindo novos templos e edificações em cenas que mais parecem as célebres imagens de mineiros do fotógrafo Sebastião Salgado.

E, claro, uma elite que se refestela na opulência com seus pequenos filhos obesos e mulheres cercadas de joias e adereços.

Lá, o grupo de Pata-de-Jaguar descobre que não serão escravos, mas são escolhidos para um sangrento ritual de oferendas de corpos, cabeças decepadas e corações arrancados por sacerdotes, para serem jogados escadaria abaixo de uma alta pirâmide como forma de aplacar a ira do Deus Sol e fazer a chuva e as fartas colheitas voltarem.


Na verdade, um espetáculo para manter as massas entretidas – milhares de pessoas embaixo assistem, regozijando-se a cada cabeça que rola pelas escadarias.   

O melhor de Hollywood: filmes de perseguição


Pata-de-Jaguar só pensa em uma coisa: fugir para resgatar sua família, presa em profundo buraco sob o risco de animais e intempéries.

Depois disso, a narrativa de Apocalypto incorre naquilo que melhor Hollywood faz: as perseguições: Pata-de-Jaguar foge pela floresta com um grupo de guerreiros no seu encalço com sede de vingança – antes de escapar, o fugitivo matou o filho do líder dos guerreiros.

Na  perseguição temos todos os clichês de filmes como Rambo, O Predador e congêneres, com direito ainda a uma alusão a Apocalipse Now: Pata-de-Jaguar emergindo de um pântano de areia movediça lembrando o atávico assassino da selva de Martin Sheen.

A luta de classes de Mel Gibson - alerta de spoilers à frente


A cena-chave de Apocalypto, sutil mas que permite essa inversão do moralismo do filme, está na sequência dos sacrifícios humanos seriais no alto da pirâmide maia. Na verdade, um espetáculo de “pão e circo” para as multidões miseráveis da metrópole.


Quando chega a vez de Pata-de-Jaguar ter o seu coração arrancado, inicia-se um eclipse do Sol. Prontamente o sumo sacerdote tranquiliza a multidão como fosse um grand finale cênico de tanta matança – bons conhecedores de Astronomia, a elite sacerdotal já sabia que ocorreria o eclipse. Já estava previsto para fazer parte do show para enganar as massas, e transformar tudo num evento religioso – um “sinal” do Deus Sol de que já estaria saciado de tanto sangue.

Por isso, o protagonista é poupado no último instante.

Há muitas teorias sobre o porquê do desaparecimento da civilização maia, muito tempo antes da chegada dos espanhóis – o filme propositalmente incorre nesse erro histórico no final, para poder reforçar a epígrafe que abre Apocalypto.

A hipótese dominante é a ecológica – esgotamento dos recursos, mudanças climáticas, seca, fome e doenças. Mas com essa sequência em que mostra a escravidão, rituais como um show para entreter as massas e manter o poder de uma elite que monopolizava o conhecimento, o filme põe em bases sociais e políticas os fatores da decadência maia.

Uma elite predatória que esgota não só a natureza mas a própria sociedade através da exploração e todos os esforços econômicos para manter a dominação. Luta de classes é cara, e esgota os recursos econômicos e naturais.

Essa é uma versão politizada da questão gnóstica do Mal – a “reversibilidade simbólica”: tudo tende a se reverter no seu contrário. Progresso em retrocesso, a paz em guerra, a ciência em horror, o conhecimento em ignorância e assim por diante.

Por isso Apocalypto é um filme surpreendente: seus pressupostos e argumentos podem ser conservadores, mas a paixão de Gibson em construir as mais eficazes e perturbadoras cenas sangrentas abre no filme o viés sociopolítico para explicar a extinção da civilização maia.

(Fonte: Cinegnose - aqui). 

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Alguns leitores questionaram o articulista sobre itens do texto acima. A leitora Mara Pereira Motta, por exemplo:

"Professor, ao dizer que a escassez de recursos não gerou o caos mostrado pelo filme o senhor de certa forma não projeta uma imagem idealista sobre a natureza humana?"

Resposta de Wilson Ferreira:

"Pelo contrário, o texto coloca que a escravidão e dominação (a luta de classes) exauriram a economia maia e a natureza, os recursos naturais e uma catástrofe climática. Daí a verdade da frase de Adorno e Horkheimer: 'Na medida que o homem domina a Natureza, domina a si mesmo'".

Ao que Mara contrapôs:

"Mas, e o caso da Ilha de Páscoa? O desequilíbrio entre a natureza e os habitantes da ilha e a destruição que eles provocaram não nos mostram o contrário? De certa forma, não pode ter sido o mesmo que ocorreu com os maias? Ou seja, a natureza humana não tende ao desequilíbrio e destruição independentemente da tribo?"

(Há vários outros comentários na 'fonte'. 
Promovemos pequenas alterações no post/comentários, para facilitar a leitura). 

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