sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A CRUZADA MORALISTA E A IDEOLOGIA DA SALVAÇÃO DAS ALMAS


A Cruzada Moralista e sua ideologia

Por André Araújo

Os movimentos políticos através da História são lastreados ou na ideologia ou na realidade do poder. No Século XX, exemplos clássicos de ações movidas por ideologia:  a luta de Leon Trotsky para implantar o comunismo na Europa em contraposição à política realista de Stalin para consolidar a Revolução dentro da Rússia pelo princípio da economia de forças.
A política de Woodrow Wilson, ao fim da Primeira Guerra, com seus 14 pontos, foi uma ação ideológica, "para abolir os pecados da velha diplomacia"; ao pensar nos ideais humanitários americanos contra a tradicional viciosidade da política europeia, plantou as sementes dos desarranjos que iriam, vinte anos depois, gerar a Segunda Guerra.
Wilson tinha ótimas intenções, mas carecia de realismo. Não conseguiu vender sua política nem para o Congresso de seu País. Sua tese "cada povo um Estado" é precursora da tese que desestabilizou o Oriente Médio com um sonho irrealizável de democracia pelo voto.
Nada mais desastroso do que a ação movida pela ideologia para um ideal democrático impossível nas ações americanas no Oriente Médio, entre 1990 e 2005, para "implantar valores ocidentais" em um terreno infinitamente mais complexo do que imaginavam os simplórios do Departamento de Estado. Ao pretender tirar do poder Saddam, Kadhafi, Mubarak e Assad, os EUA desmontaram todo o delicado xadrez do Oriente Médio, numa situação  pior do que seria deixar os ditadores, que, pelo menos, mantinham um mínimo de estrutura de controle na região.
A cruzada moralista de Curitiba se insere em uma ação ideológica para impor princípios que seus atores julgam válidos em nome da justiça, o que é uma ideologia. Não se desprezam suas boas intenções mas assusta o completo descaso com as consequências laterais  de suas ações sobre a governabilidade e sobre a economia.
Ao liquidar com grandes empresas e setores dinâmicos da economia nacional, tornam a recessão mais profunda e a recuperação do crescimento  mais difícil, algo que parece não os incomodar minimamente. A visão ideológica é reducionista,  reduz todos os problemas do País ao combate à corrupção, desprezando a complexidade econômica e social do País e maximizando um problema como epicentro de todos os demais desafios para o desenvolvimento. Nessa visão, uma vez acabada a corrupção, todos os demais problemas estarão resolvidos.
Por que cruzada moralista e não simples força-tarefa? Porque o conceito de cruzada é mais amplo que uma simples operação de força tarefa. O movimento de Curitiba é revolucionário porque o Ministério Público e o Juizado agem em conjunto como força única de ataque contra a corrupção, o que é contrario à regra democrática de separação de funções entre Juiz e Promotor. Mas essa ação irregular não merece nenhum reparo da hierarquia superior, provavelmente impressionada pela opinião publicada vendida como opinião pública pela mídia de apoio da força tarefa.
Todavia, o sentido maior de cruzada vem do apoio incondicional da mídia conservadora ao dispositivo de ataque e é esse apoio que transforma o movimento em força política de grande dimensão com objetivo politico maior do que um simples processo judicial.
A cruzada moralista coloca em risco dois valores, a governabilidade, qual seja a capacidade do Poder executivo de governar, e o clima econômico para a tomada de decisões que exigem alguma previsibilidade no horizonte.
A governabilidade é afetada pelo risco contínuo de ações, vazamentos, prisões,  cassações e  bloqueios de bens. A operação judicial é um processo inédito no mundo porque dura mais de dois anos sem interrupção e não tem previsão de acabar.
Processos político-judiciais desse tipo existem, mas são excepcionais porque nenhum governo continua funcionando sob essa espada por tanto tempo. No Brasil, os governos perderam a vergonha e fingem governar sob contínua ameaça sem aparentemente se importar com a corrosão de seu poder.
A "corrupção das democracias parlamentares" era o grande tema dos discursos de Mussolini e Hitler na Europa dos anos 30. O alvo mais evidente era a venalidade notória da Assembleia Nacional francesa da Terceira República, e o nazi-fascismo passou a usar esse pretexto para justificar a superioridade dos regimes totalitários, onde aliás a corrupção era infinitamente maior, com o agravante de ser exercida com violência e  sob férrea censura. As cruzadas moralistas são historicamente as prévias do fascismo que se justifica para "fazer uma limpeza", entendida como a punição da classe política.
Na Itália de Mussolini, o Deputado Matteotti foi a primeira vítima na guerra contra o Parlamento, movimento que prosseguiu até o expurgo completo dos "corruptos" abrindo caminho para a ditadura plena do Partido Fascista.
A cruzada moralista pretende ancoragem em "trends" globais pelos quais a transparência e a "accountability" são tendências irreversíveis por todo o mundo. Nada mais falso. Rússia, China e Índia, potências globais, não têm a transparência como meta e nelas a corrupção é parte central do projeto político. Os oligarcas russos são produtos da corrupção, Putin é o homem mais rico do mundo com US$85 bilhões de fortuna, a China é o País com maior numero de bilionários depois dos EUA; muitos deles, como na Rússia, se tornaram ricos passando para seu nome empresas estatais.
O último bastião do moralismo cruzadista são os EUA, mas com um governo Trump a tendência será revertida. Nada mais politicamente incorreto do que Trump e sua troupe; transparência e moralidade não são metas do Governo Trump. Com o que a tocha do moralismo político fica com o Brasil, único País do mundo que está desmontando sua economia em nome do combate à corrupção em um processo sem fim, algo também inédito pela sua irracionalidade.
O País não se interessa mais por construir navios, sondas, hidrogeradores. A meta hoje é produzir inquéritos e delações, a mídia tem espasmos de satisfação quando fala em 77 delatores como marca de sucesso, se fossem 110 seria melhor ainda, não há mais notícia de novas estradas, usinas, portos. A totalidade do noticiário hoje dá como notícia o fato do Juiz ter aceito a denúncia contra Lula, como se fosse possível não aceitar. Foi aberto inquérito, foram distribuídos 23 mandatos de busca e apreensão, essa é a totalidade do noticiário. A mídia se desinteressou dos temas políticos e econômicos, só trata de notícias judiciais-policiais.
O papel da mídia na construção da cruzada moralista é crucial e a aliança é paga com vazamentos que geram manchetes, escândalos e aumentam as vendas e audiências.
A mídia, por sua vez, e tenho visto isso com uma reiteração impressionante, não vê nenhum problema, por exemplo, no Estaleiro Rio Grande despedir 3.200 empregados, os últimos, quando já teve 18.000. Estaleiro esse que pertence a uma das firmas mais envolvidas pela Lava Jato. Os demais estaleiros estão fechando, assim como bom número de grandes empreiteiras, não só elas, mas seus ramos paralelos, seus fornecedores e prestadores de serviços.
Afirmações alucinadas se veem na mídia. Outro dia, no Programa Três em Um da Rádio Jovem Pan, um certo Madureira disse que a Odebrecht poderia fechar sem problemas (e explicou:) Seria até bom que fechasse, afinal quem faz as obras são os engenheiros, estes podem se reunir dois ou três e continuarem as obras.

A Odebrecht já despediu 100.000 empregados e não se sabe de uma turma de "dois ou três engenheiros" se juntarem para continuar as obras.
Muita gente pensa assim, se fecham as grandes vêm as menores, desconhecendo que uma grande construtora não é só uma sala com engenheiros. Há uma imensa concentração de aptidões, expertise, experiência acumulada. Montar um canteiro no meio da Amazônia não é para "dois ou três engenheiros", há uma rede de alianças, conexões e parcerias que só a vivência no ramo por décadas é capaz de aglutinar com rapidez.
Um dos aríetes da mídia engajada é alegar o "apoio" irrestrito da opinião pública à cruzada moralista, apoio esse impossível de medir ao se confundir opinião pública com opinião publicada. De qualquer modo, esse apoio, no limite em que exista, não estabeleceu até hoje uma ligação entre crise econômica e ações persecutórias da operação judicial. Aqui e ali aparecem algumas conexões, mas não chegou ao cerne da opinião pública.
Tampouco causou qualquer controvérsia na mídia o fato inédito, em escala mundial, pelo qual uma força tarefa anticorrupção colaborar com uma potência estrangeira, no caso os EUA, a perseguir e processar sua estratégica indústria aeronáutica, a 3ª no ranking mundial, ao final obrigada a pagar US$208 milhões ao Tesouro americano. Tudo feito com a colaboração vinda do Brasil contra a Embraer; quer dizer, em nome da ideologia anticorrupção coloca-se em risco uma empresa de crucial importância para o País, como se isso fosse algo banal. A regra é os Estados protegerem a ferro e fogo sua empresas de tecnologia de ponta na área de defesa e nunca a entregarem a um Governo estrangeiro como presa de guerra com essa leviandade, tudo em nome da ideologia moralista.
A cruzada moralista tem entusiasmado apoio da mídia conservadora. É preciso que a população saiba de seus custos. O Brasil tem grave problema em lidar com a realidade, todos querem parecer politicamente corretos e operar em um teatro de ficção.
As operações anticorrupção, que já vão para três anos, estão no epicentro da crise política e estão aprofundando a recessão, causam desemprego e impedem o crescimento. É preciso não ter ilusões a esse respeito, poucos atores da política têm coragem de falar claro, todos querem parecer amigos da investigação embora saibam o desastre que a operação causa na economia.
O Brasil tem sua imagem no exterior completamente manchada, boa parte dos fundos de investimento não tocam no Brasil. Elogios às operações anticorrupção podem existir em núcleos de juristas, ativistas da transparência e colegas procuradores. Mas para por aí.
No meio empresarial dos grandes países ninguém acha graça em saber que empresários brasileiros são presos por atacado. Nomes como Odebrecht são conhecidos internacionalmente, a sua prisão por tanto tempo causa espanto.
Os empresários do exterior são colegas dos brasileiros e ninguém gosta de ver colegas presos. Essa "razia" das operações anticorrupção causa um gosto amargo lá fora e ninguém acha isso bonito. Há uma ilusão em certos círculos politicamente corretos sobre a virtuosidade dessa cruzada como valor  em si mesmo, sem análise do bom e do ruim, dos custos e consequências.
O carimbo de país corrupto ressaltou na grandeza para o Brasil, enquanto países de histórica corrupção, como México, Índia, China , Rússia, Indonésia, África do Sul e Argentina não sofrem no exterior esse desgaste de imagem que se colou nas instituições políticas brasileiras, "covil de ladrões" segundo seus detratores.
Mas pior do que o reflexo no exterior é a quebra generalizada da confiança fundamental para o funcionamento da economia. Se todos delatam todos, confiar em quem? E sem confiança como fazer negócios? O ambiente das delações corrói como veneno escorrendo da boca a rede de confiabilidade em que se estrutura grande parte das transações no mais alto patamar.
A projeção dessa cruzada no exterior liquidou com a presença de empresas e empreiteiras brasileiras na África, Oriente Médio e  América Latina. Trinta anos de luta pela presença em mercados importantes, como Angola, jogados fora com a pior das ações, empreiteiras brasileiras delatando personalidades de governos estrangeiros. Quando o Brasil conseguirá uma obra nova no exterior com essa fama de alcaguete?
Enquanto isso, empreiteiras chinesas, indonésias, turcas, indianas, malaias, tailandesas, operam sem qualquer problema de moral nos mercados africanos, e os brasileiros "politicamente corretos", "primeiros da classe" são vistos como "queimados" nesse ambiente. Nossa cruzada teve a pretensão de "moralizar" mercados de obras públicas no exterior, só nós, "os santos": nossos concorrentes riem de nossa ingenuidade, mercados de obras públicas têm certos costumes seculares e não será o Brasil o fiscal do setor a nível mundial.
A questão das tarefas de julgamento no estilo "revenge" ou "acerto de contas" sob o pano de fundo político teve um exemplo fundamental no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra de Nuremberg. Estabelecido o Tribunal, em outubro de 1945, decidiram as potências aliadas, sob a liderança decisiva dos EUA, limitar os réus a 24, contra opiniões contrárias dentro do próprio EUA, onde o Secretário do Tesouro Henry Morgenthau, judeu, queria processar 10.000 nazistas. Prevaleceu a força do General George Marshall, líder absoluto das forças armadas americanas,  que via como prioridade a reconstrução da Europa e para tanto era necessário acabar o mais rapidamente possível com processos criminais  contra os alemães para que as forças de ocupação se voltassem para a reconstrução.
Dos 578 generais da Whermacht, somente 2 foram réus em Nuremberg, Jodl e Keitel, ambos enforcados. Dos oficiais das SS, figurou apenas Kaltnbrunner, escapando o General Karl Wolff, segundo homem da hierarquia das Waffen SS, poupado porque fez um acordo proveitoso para os Aliados ao render um milhão de soldados no norte da  Itália.  O julgamento acabou em um ano e dentro da mais pura Realpolitik. Milhares de ex-oficiais nazistas das três forças passaram a colaborar no esforço de reconstrução da Alemanha Ocidental, figuras emblemáticas, como o Marechal von Manstein, passaram a trabalhar para os Aliados. Talleyrand não faria melhor. Nuremberg foi "realpolitik" no estágio mais puro. Às favas com justiça como ideologia, é precisa olhar para frente e não para trás.
A rápida resolução do julgamento de Nuremberg, considerando a extensão dos crimes submetidos à sua jurisdição, mostra a força do critério de solução racional e rápida de processos-crime visando tocar as tarefas do futuro e não ficar mastigando ao infinito a vingança pelos malfeitos, propensão que domina a visão de "expiação" algo religiosa que vem de nossa cultura ibérica vingativa. É preciso "queimar" o herege para purificá-lo, não interessa o mundo real mas sim a salvação das almas.
A operação anticorrupção pode durar 5 anos, como a Comissão McCarthy, ou até 10 anos. O processo vai levar a uma destruição inédita dos canais e redes em que se estruturam os empreendimentos de grandes consórcios de obras públicas e concessões.
Cada um dos 77 delatores da Odebrecht tem uma carreira, uma família, tudo construído em décadas. Depois de delatar vão fazer o quê? Quem os empregará? O carrinho de cachorro-quente pode ser uma saída.
É possível que a população brasileira, açulada pela mídia, prefira a continuação das operações anticorrupção por dez anos. É uma opção. Mas é preciso ficar claro que enquanto durar o ambiente de caça às bruxas com show midiático o Brasil não vai crescer, não tem como crescer. O ambiente para o crescimento exige otimismo e visão do futuro. Em um ambiente turbado, onde a única coisa que se produz são inquéritos, delações, processos, não há nenhum elemento de prosperidade e todo o centro dinâmico da economia fica paralisado. Para pegar o rato no telhado se põe a casa abaixo, esse é o programa. E o pior é que essa hecatombe se faz sobre frenético aplauso da mídia conservadora, força central da cruzada.
Qual o objetivo final da cruzada moralista? Só existe um. Como o poder politico é essencialmente corrupto e não se autocorrige deve ser extinto ou anulado. É o lema da "corrupção das democracias parlamentares" dos discursos de Mussolini.
Mas o poder político é o único instrumento para a existência da democracia. Ao se extinguir esse poder, porque é corrupto, extingue-se a democracia. A ação da cruzada moralista não tem outro desfecho, busca o fim da democracia e a implantação de um regime puro, onde não há o pecado, algo que um certo Pol Pot pretendia e quase conseguiu em um país chamado Cambodja, a custa do fuzilamento de dois milhões de corruptos em uma população de oito milhões.
O processo da cruzada moralista é uma espécie de loucura coletiva inédita na História brasileira, uma espécie de "Caso Dreyfuss". A política sempre operou com dinheiro, aqui, na França, nos EUA, na Rússia, não existe politica sem dinheiro. É possível melhorar regras, mas não é possível extinguir o pecado, algo que a cruzada pretende e, no processo de eliminar o pecado, vai acabar com a democracia e levar o País ao maior obscurantismo de sua História. (Fonte: aqui).

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Demonstração do profundo descaso dos senhores da Lava Jato relativamente às empresas brasileiras: a inconformidade, irritação e revolta do MPF por ocasião da firmatura dos primeiros acordos de leniência entre governo federal e corporações implicadas na citada operação (entendimento até hoje presente, supomos). O raciocínio prevalecente era/é o de que nenhuma complacência é admissível, nem mesmo se visando a assegurar empregos e/ou proteger interesses estratégicos do Brasil: se é para ser extinta, que seja, se o que restar for a terra arrasada, que se consagre tal cenário. E quem discordar disso é conivente (melhor dizendo, leniente) com a corrupção! 

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