segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

ECOS DO BARQUINHO: O ESTADO DE DIREITO E SUAS ILHAS DE EXCEÇÃO


Quem pode, pode, quem não pode fica na mira da Lava Jato

Por Yuri Carajelescov

O rapaz que nos leva de Trancoso ao aeroporto de Porto Seguro nasceu no interior de São Paulo e morou por vinte anos em Curitiba, onde se formou em turismo.

Há pouco mais de dez anos mudou-se com a família para o sul da Bahia e arrendou uma pousada. Depois montou com a irmã uma empresa de turismo.

Pergunto dos negócios. “Vão bem, obrigado”, diz ele. Não se arrepende de ter fugido do frio da capital do Paraná para o calor intermitente da Bahia.  Ao longo da estrada de terra Trancoso – Arraial que percorremos com certa dificuldade, vamos conversando sobre diversos assuntos.
Questiono por que ainda não asfaltaram aquele trecho. Ele me diz que o pessoal do condomínio “Terravista Golf” se opõe. “Vai juntar muita gente por aqui e esse pessoal gosta de exclusividade”. 

O condomínio de mansões é o mais luxuoso e exclusivo desse badalado litoral. A localização – sobre uma falésia com vista para o mar – é mesmo privilegiada. Passamos por ele à beira da estrada. O empreendimento, segundo o nosso guia, foi construído por uma alemão de nome Michael, dono de uma das maiores empresas de cerâmicas de São Paulo, e conta com Campo de golfe de 18 buracos, além de um aeroporto privativo.
  
No mesmo espaço estão as instalações do Club Med/Trancoso e do resort Txai em fase de acabamento.

“Fernando Henrique e seus familiares têm uma casa nesse condomínio e vivem por aqui no verão”, me informa o guia sem ser perguntado.

“Eles vêm de jato privativo e não pegam essa estrada de terra” e sem complementar a frase afirma em um tom entre jocoso e conformado: “quem pode, pode...”

Também o  Constantino, não o blogueiro mas o dono da Gol, costuma frequentar uma casa no local.

Claro que não saí confirmando os fatos; não fui à imobiliária local para saber qual o preço do metro quadrado construído no condomínio “Terravista Golf”; não conversei com porteiros ou camareiras para saber se, de fato, FHC é habitué; não andei nas lojas de materiais de construção próximas pesquisando se casas foram reformadas e quem e como pagou cada reforma. Nem me cabia...

Supondo verdadeira a história que o guia me relatou, a pergunta que se faz é: “e daí?”.

Do fato –  suposto - de FHC frequentar ou ter um imóvel em um condomínio de luxo na Bahia e ser vizinho de Constantino, o dono da Gol não o blogueiro, podemos concluir que o ex-presidente se locupletou ou se apropriou de bens públicos? Que assaltou o erário? Que obteve favores indevidos em troca de medidas que tomou dentro de sua margem de discricionariedade administrativa de um presidente da República? Que se corrompeu? Que prevaricou?
  
Qualquer pessoa de bom senso, que preze o Estado de Direito, a democracia, o princípio da presunção de inocência, o princípio da dignidade humana etc. diria que não.
  
Substitua agora FHC por Lula e esse relato banal, corriqueiro, história frívola de fim de viagem, certamente ganharia as manchetes dos principais diários e revistas do País.  Se uma canoa de 4 mil reais, cotas de um apartamento no decadente Guarujá ou a reforma de um sítio “usado” por Lula e familiares em Atibaia geram esse estardalhaço, fácil imaginar o que ocorreria se Lula frequentasse o exclusivo “Terravista Golf” de Trancoso, pois não? Pior do que isso.

Não apenas a imprensa se ocuparia do tema de manhã, de tarde e de noite, em seguidas e seriadas matérias, mas seriam mobilizados os órgãos de repressão do Estado.
  
Provavelmente o caso se desdobrasse em mais uma fase da Lava Jato e ganhasse até um nome para ser marchetado no inconsciente coletivo: “operação 18 buracos”, em alusão ao campo de golfe; “operação capeta ou xiboquinha”, em referência aos drinques da região, quiçá do agrado de Lula?

É que no Brasil de hoje, a investigação parte da pessoa para o fato.  Alguém deve ser criminalizado, então os agentes da repressão, como bons perdigueiros, saem a caça do crime.  Trata-se de uma inversão da ordem racional das coisas, que não chega a ser uma invenção genuinamente nossa.

Outros regimes (e nós mesmos em outros contextos históricos) já adotaram esse ‘modus operandi’  para perseguir seus “desviantes”. Todos eles nada tinham de republicanos.  A novidade aqui é a criação de ilhas de exceção dentro do Estado de Direito, o que parece mais sutil, ainda que igualmente deletério.
  
Ao decolar de Porto Seguro, o avião da Gol faz uma curva à direita e sobrevoa o litoral de Trancoso rumo ao sul.  Sentado na poltrona próximo à janela da aeronave, reconheço o condomínio “Terravista Golf”. Avisto o campo de golfe, a pista do aeroporto privado, as piscinas recortadas nos jardins das mansões. Penso comigo: “quem pode, pode...” . (Fonte: aqui).

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