quinta-feira, 26 de novembro de 2015

PARA (NÃO) ENTENDER A PRISÃO DE UM SENADOR PELO STF


Para (não) entender a prisão de um Senador pelo STF

Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa

Se o Senador Delcídio do Amaral praticou ou não as condutas descritas na decisão que “decretou sua prisão em flagrante” somente o devido processo legal irá apontar. Somos professores de Processo Penal e acreditamos em duas questões preliminares a partir da defesa intransigente da Constituição: a) Senadores devem ser investigados e punidos caso cometam crimes; b) não é permitida a prisão preventiva dos Senadores. Não se trata de gostar ou não dos dispositivos constitucionais, pois se assim acolhermos, quando a regra constitucional não nos fosse conveniente, poderíamos, simplesmente, modificar o sentido normativos por contextos, tidos por nós mesmos, e no caso o STF, graves? A gravidade, na linha de Carl Schmitt, autorizaria a decisão do “Soberano Constitucional” de suspender os dispositivos constitucionais, instaurando-se a exceção? Abrimos espaço para em nome da finalidade justificar o que não se autoriza? Seria uma faceta do ativismo?
Acabamos de ver um dos exemplos de como não deve decidir uma Suprema Corte em um Estado Democrático de Direito e como não devem cinco Ministros agir por emoção. É muito preocupante quando o Supremo Tribunal Federal determina a prisão de um Senador da República contrariando explicitamente a Constituição, afrontando a soberania popular e o poder constituinte originário. Obviamente que o Senador não tem imunidade absoluta, mas tem. Di-lo a Constituição e é preciso que se respeite o art. 53 da Lei. Nada justifica uma tal teratológica decisão, nem a corrupção, nem crime de lavagem de dinheiro, nem integrar organização criminosa ou outras tantas outras “iniquidades”, como disse a Ministra Cármen Lúcia, ao acompanhar o voto do Ministro Teori Zavascki.
Em suas decisões, a Suprema Corte deveria observar (e não tem feito) as normas constitucionais (e, eventualmente, se for o caso, as convencionais). É um dever republicano. É isso que esperamos dos Ministros. Não esperamos vindita, nem arroubos, nem frases de efeito, nem indignações inflamadas e retóricas. Deixemos isso para políticos populistas e programas policiais!
A Constituição da República é muito clara: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.” (art. 53, § 2º, da Constituição Federal).
Quais são os crimes inafiançáveis referidos na decisão do Ministro Teori Zavascki? Aprende-se nos primeiros anos da Faculdade de Direito, por mais medíocre que seja o Professor de Processo Penal, serem eles o racismo (não a injúria racial), a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, os definidos como crimes hediondos, o genocídio e os praticados por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, nos termos do art. 5º., XLII e XLIII da Constituição da República. Quais destes crimes o Senador da República praticou? Na decisão não está escrito. Devemos aguardar a denúncia.
Citou-se na decisão o art. 324, IV do Código de Processo Penal. Mero malabarismo que, obviamente, não se admitiria nem em uma decisão de um Juiz pretor (se ainda existissem no Brasil tais figuras), quanto mais de um Ministro do Supremo Tribunal Federal de quem se espera “notável saber jurídico”. Este artigo só seria aplicável ao caso se fosse possível a decretação, ao menos em tese, da prisão preventiva do Senador, o que não é, pois, como vimos acima, ele tem imunidade formal dada pela Constituição da República, pelo Constituinte originário (aliás, ao longo da referida decisão são citados artigos do Código de Processo Penal que estão justamente no Capítulo III, do Título IX, que trata da Prisão Preventiva). Dito de outra forma, a invocação do art. 324, IV, do CPP, somente poderia ocorrer se o pressuposto – decretação da prisão preventiva – fosse possível.
Logo, o art. 324, IV do Código de Processo Penal não serve para estabelecer o conceito de inafiançabilidade, para efeito de excepcionar o art. 53 da Constituição da República. Trata-se apenas de um impedimento para a concessão da liberdade provisória com fiança. Mas isso é óbvio!!!! Um crime não se torna, ao menos no Brasil, inafiançável porque estão presentes os requisitos da prisão preventiva. Assim decidindo o Supremo Tribunal Federal acabou aditando a Constituição para prever um sem número de novos casos de inafiançabilidade. Ainda mais que o caput do art. 313, ao contrário da redação anterior à reforma de 2008, não mais limita a decretação da prisão preventiva aos crimes dolosos. Portanto, ainda que em tese, até o autor de um crime culposo (se envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, por exemplo) pode ser preso preventivamente (inciso IV).
Mas ainda há coisa pior, muito mais grave, se é que é possível. Utiliza-se como elemento fático para fundamentar a decisão uma gravação feita por um dos interlocutores do Senador, presente ao seu espaço, ou seja, uma escuta ambiental não autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, único órgão do Judiciário que poderia fazê-lo, tendo em vista que se tratava de alguém detentor de prerrogativa de foro junto à Suprema Corte. Ora, sabemos que este tipo de ato investigatório invasivo da privacidade é admitido no processo penal brasileiro de forma excepcional (Lei nº. 12.850/13), mas sempre, e necessariamente, a partir de ordem judicial, o que não foi o caso. Sequer a Comissão Parlamentar de Inquérito teria tal poder, nada obstante o art. 58 da Constituição da República.
Tratou-se, portanto, de uma prova obtida ilicitamente! Escancaradamente ilícita. Mais ilícita impossível! Jamais poderia ser utilizada contra alguém. A favor sim, nunca contra. Isso é elementar. O resto é querer punir por punir, “exemplarmente”, como disse o Ministro Celso de Mello, ao referendar a decisão do Ministro Teori Zavascki. Sem contar a possível gravação conveniente dada a entrega posterior para fins de troca na delação premiada homologada, sequer pelo interlocutor da gravação, mas por terceiro, com os riscos do induzimento e surpresa. Aliás, o STF no julgamento da Ação Penal n. 307-DF, deixou dito o Min. Celso de Mello: “A gravação de conversa com terceiros, feita através de fita magnética, sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser contra este utilizada pelo Estado em juízo, uma vez que esse procedimento, precisamente por realizar-se de modo sub-reptício, envolve quebra evidente de privacidade, sendo, em consequência, nula a eficácia jurídica da prova coligida por esse meio. (…) A gravação de diálogos privados, quando executada com total desconhecimento de um dos seus partícipes, apresenta-se eivada de absoluta desvalia, especialmente quando o órgão de acusação penal postula, com base nela, a prolação de um decreto condenatório.
É até muito compreensível que os Ministros tenham se sentido ofendidos com o diálogo captado ilegalmente, mas completamente inadmissível que tais Magistrados tenham sido levados pela emoção a ponto de rasgarem a Constituição que prometeram cumprir. E nosso papel de professores de Direito é, com as vênias de praxe, apontar o nosso desacordo.
Será que eles avaliaram o precedente que acabaram criando quando, por exemplo, admitiram uma escuta ambiental clandestina para legitimar a prisão preventiva ou a prisão em flagrante? Se assim foi para um Senador da República, assim será para um ladrão de uma sandália de borracha no valor de R$ 16 ou de 15 bombons artesanais no valor de R$ 30 ou mesmo de dois sabonetes líquidos íntimos, no valor de R$ 48, já que estes, segundo o mesmo Supremo Tribunal Federal, praticaram crimes (Habeas Corpus nºs. 123734, 123533 e 123108, respectivamente).
Uma última observação: se houve prisão em flagrante, não era o caso do preso ser apresentado imediatamente ao Ministro Teori Zavascki para a audiência de custódia, como determina a Convenção Americana sobre Direitos Humanos? Assim entendeu o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 347.
Calmon de Passos escreveu o seguinte: “a crítica ao positivismo e o incentivo ou ênfase no papel criador do intérprete, que é também aplicador do direito, tem o grave inconveniente de ser um despistamento ideológico. Na verdade, uma regressão. Esquecemo-nos, nós, juristas, que não trabalhamos com assertivas controláveis mediante a contraprova empírica. Nosso saber só se legitima pela fundamentação racional (técnica, política e ética) de nossas conclusões. Se não nos submetermos à disciplina da ciência do Direito e aos limites que o sistema jurídico positivo impõe, estaremos nos tornando criadores originais do direito que editamos ou aplicamos; consequentemente, nos deslegitimamos por nos atribuirmos o que numa democracia é inaceitável – a condição de deuses (se somos pouco modestos) – ou nos tornamos traidores de nosso compromisso democrático (se temos vocação para déspotas).[1]
Então, escolham Ministros da 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal: ao ignorarem a Constituição da República, os senhores e senhoras arvoraram-se em instaurar e decidir em exceção, no mais lídimo ativismo. É a nossa reflexão como Professores de Processo Penal que cumprem a Constituição e manifestam o desconforto em face da constitucional regra da Liberdade de Expressão.
Salve-se quem puder e confira, agora, sempre, se o seu interlocutor não está gravando! Vale, vale tudo…

[1] Direito, poder, justiça e processo – Julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 61.
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Fontes: Empório do Direito - aqui - e Jornal GGN - aqui.
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Para justificar a prisão do senador Delcídio, houve um 'elastecimento interpretativo' da Constituição da República por parte da instância proponente, no caso o Ministério Público Federal, por seu PGR. Isso, aliás, foi expressamente ressaltado pela imprensa. O Uol, por exemplo. Os ministros integrantes da turma do STF, portanto, foram 'convencidos' pelo PGR de que a CF estava sendo preservada.
Entre os muitos comentários que o texto acima suscitou, transcrevo o de autoria de Gerivaldo Neiva, Juiz de Direito (Ba) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJP):
"Aos amigos que me perguntam sobre a prisão do Senador
- O motivo: não existe uma ação penal, inquérito ou investigação em curso contra o senador. Logo não se trata de prisão preventiva, pois o artigo 311, do Código de Processo Penal, define: “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.” Em conclusão, somente o flagrante autorizaria a prisão e foi essa a conclusão do despacho: presentes situação de flagrância”.

- O requerimento: a prisão “cautelar” foi requerida pelo procurador geral, justificada em flagrante continuado, sob acusação de formação de organização criminosa: “A solução jurídica que a legislação processual penal oferece para a situação consiste na prisão cautelar dessas quatro pessoas: é cristalina a incidência à espécie do disposto nos arts. 312 e 313, I, do Código de Processo Penal.”

- A decisão: o ministro entendeu que havia crime permanente, que a gravação clandestina era legal, que estavam presentes os requisitos para a prisão preventiva e que não era o caso de aplicação de medidas cautelares diferente da prisão, embora tivesse sido requerido subsidiariamente: “Ante o exposto, presentes situação de flagrância e os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão cautelar do Senador Delcídio Amaral, observadas as especificações apontadas e ad referendum da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.”

- A prova: uma conversa gravada em 04.11.2015, sem o conhecimento dos demais presentes, ou seja, uma prova ilícita que assim já foi definida pelo STF em outros julgamentos;

- O futuro: se o procurador entender que lhe basta a gravação como prova, o caso prossegue com o oferecimento da Denúncia, instrução criminal e julgamento. Caso contrário, seria o caso de instauração da fase investigativa e colheita de outras provas.

- A prisão do senador era necessária? No requerimento do procurador há pedido subsidiário de aplicação de medidas alternativas: suspensão do mandato, uso de tornozeleira e proibição de contato com os acusados da “Lava a Jato”. O ministro entendeu diferente: “nenhuma das medidas alternativas indicadas no art. 319 da lei processual penal tem aptidão para, no caso concreto, atender eficazmente aos mesmos fins."

- Os ministros citados: a gravação faz referência a alguns ministros do STF e até quem seriam os interlocutores para conversar com eles acerca de ações sob suas relatorias. Existe alguma verdade nisso? Não seriam também vítimas de um plano sórdido de violação do Estado Democrático de Direito? No mínimo, devem uma explicação ao país.

- Juízes e Tribunais: discursando em tese e esquecendo os nomes dos envolvidos e da investigação em curso, se um juiz de direito de uma comarca de entrância inicial, de posse de uma gravação obtida de forma clandestina, mesmo não havendo investigação ou ação penal em curso, sob argumento de que nas falas ocorreram crimes permanentes, justificando o flagrante continuado e necessidade de prisão preventiva, descartando a aplicação de medidas cautelares diferentes da prisão, decretasse a prisão em flagrante dos envolvidos mais de 20 dias depois da conversa gravada, esta decisão seria revogada em menos de 24 horas por um tribunal superior e o juiz encaminhado ao CNJ para responder por seu erro grotesco.

- Decidir e escolher: acho que Lenio Streck está quase cansado de repetir que decidir é diferente de escolher, mas parece que ainda estamos muito distantes da construção de uma “teoria da decisão” em que a Constituição e os princípios mais elementares do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e presunção da inocência sejam mais importantes do que ressentimentos e escolha de juízes.

- Prazo da prisão: sem previsão.

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