quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O MORALISMO AMERICANO E O TEATRO DO ABSURDO


Madame Chiang Kai-Shek e o perigoso moralismo americano

Por André Araújo

A chinesa Soog May Ling, filha de um pastor protestante americanizado, Charlie Ling, nascida em 1898 e falecida em 2003 - portanto esteve em três séculos - foi a célebre esposa do líder nacionalista chinês Generalíssimo Chiang Kai-Shek, governante da China de 1930 a 1949.

Já escrevi aqui neste blog sobre essa interessante personagem, mas hoje a trato de outro ângulo.

A Madame Chiang Kai-Shek foi o subproduto mais simbólico de uma crença de missão divina do moralismo americano.

Os EUA foram formados por emigrantes muito religiosos e crentes na vida regida por princípios morais. Essa dimensão ficou imantada no ethos e no subconsciente dos americanos em geral. Até hoje, depois de tantas aventuras pelo mundo, eles se acham imbuídos de uma bandeira moralista superior à de todos os demais povos. Falsa ou não na sua essência, essa ideia de "missão da moral e da ética" faz parte da visão americana do mundo.

Uma das grandes cruzadas onde essa missão se tornou realidade foi a tentativa de evangelização da China, a partir do começo do século XIX; casais de pastores americanos invadiram a China, especialmente a partir da Primeira Guerra do Ópio, em 1842. Antes ,evangelizadores britânicos já percorriam a China, mas os americanos vieram em muito maior número e com objetivos bem mais amplos, tornar a China toda cristã, no que falharam completamente.

Sempre em casais, porque um pastor homem não poderia pregar para mulheres chinesas, percorreram toda a China, um trabalho árduo naquele tempo de condições muito precárias no grande País. Em 1900 eram cerca de 2.500 casais de pregadores americanos no País, todo o sistema sustentado pelas igrejas americanas, que financiavam a missão.

Soong May Ling e sua irmã Chiang Ling, primeira dama da República da China, casada com o fundador da República em 1911,  o Dr. Sun Yat-Sen, também protestante convertido por pastores americanos, eram a máxima expressão do resultado dessa missão religiosa moralista dos pastores americanos. As duas irmãs foram primeiras-damas da China, educadas nos EUA, com todo o verniz de moças americanas; elas foram o resultado da missão moralista civilizadora.

O resultado, a Madame Chiang Kai Shek foi a mulher mais corrupta do Século XX, roubou tanto que morreu bilionária com 105 anos em um apartamento de 27 quartos em Manhattan. Seu irmão Tse Ven, conhecido como T. V. Soong, foi Ministro da Fazenda e Presidente do Banco da China durante o regime do cunhado e roubava a folha de pagamento do Exército, que lutava contra os japoneses, enviada pelos Estados Unidos. O Generalíssimo vendia munição e artilharia americana para os japoneses que ele deveria combater. Essas narrativas constam das memórias do General Joseph Stilweel, adido militar americano junto ao QG do Generalíssimo. Stilwell mandava relatórios semanais para Washington sobre a corrupção do regime, mas era inútil. A Madame foi capa da revista TIME por três vezes, apresentada como a "mulher do bem" que iria salvar a China. Seu lobista principal em Washington era Henry Luce, dono das revistas TIME e LIFE, ele mesmo filho de pastores que pregaram na China e fanático pela admiração ao casal Chaing Kai-Shek.

Outro símbolo do moralismo americano foi o Presidente Wilson, um homem sempre fora da realidade em função de seus princípios; fez uma Presidência desastrosa; ao fim quem governava era a esposa, quando ele ficou doente por longo período. Wilson via a Europa e os europeus como altamente corruptos, a América Latina, então, era terra de bandoleiros e essa visão até hoje subliminarmente se mantém na mente americana.

Todavia, muito do moralismo americano é retórica pura. Os EUA, a partir da Guerra Civil, foram construídos basicamente por aventureiros e ladrões, a época das ferrovias (1865-1890) era a época da trapaça, os poíiticos de Nova York (Tammany Hall), de Chicago (família Daley, até hoje no poder), Huey Long na Lousiana, Tom Prendergast no Missouri, políticos que fariam o Coronel Odorico parecer coroinha. No início do século XX, a construção dos trustes do petróleo, do aço, do telefone, da química, dos carros, do alumínio, do cobre, tudo isso foi realizado com grande dose de malandragem e pirataria. Mas nada muda a "missão moralista" expressa hoje em leis que tornam a vida das empresas complicadas ao limite, com sua "compliance" ao infinito; hoje ocupa-se mais gente e gasta-se mais dinheiro com compliance do que com o resto da empresa.

O pior do moralismo americano é quando não americanos tentam copiar o discurso pelo que está no papel, sem entender a história por trás da prédica; aí a coisa fica feia. O moralismo americano sempre foi, mas hoje mais do que nunca é um grande teatro do absurdo, um evangelho que serve de capa dura para todas as mazelas da civilização americana antes e agora. Ele convivia junto com as máfias, com a podridão de Hollywood, com truques financeiros.

Chamei a atenção para a Madame Chiang Kai-Shek porque ela fez toda a política de seu marido e construiu sua história a partir do discurso moralista que, no caso dela e da família, era completamente falso, mas seu cacife era ser a "moça boazinha que falava inglês perfeito", enquanto roubava o pão dos chineses. Enganou bem e por muito tempo. (Fonte: aqui).

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Teria valido a pena, certamente, a alusão à fortíssima influência do protestantismo na formação do perfil do 'sociedade americana'. A propósito, há uma sigla que o define: WASP: White (branca), Anglo-Saxã and Protestant. Do protestantismo, a convicção, entre tantas outras, da livre iniciativa, de que Deus punirá quem não lutar para prosperar (muitos achando que para tanto vale tudo, inclusive trapacear), do individualismo exacerbado, da obrigação de cada criança, aos cinco, seis anos de idade já começar a ler a Bíblia (o pai que não cumprir esse dever estará incorrendo em pecado), o que, claro, tem no mínimo o enorme benefício de estimular a alfabetização, etc, etc, etc.  

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