sábado, 22 de agosto de 2015

NO CLIMA DOS 50 ANOS DA JOVEM GUARDA

               Geraldo Vandré, Roberto Carlos e Chico Buarque: 1966.

O dia em que Chico Buarque tentou "roubar" Roberto Carlos do rock

Por Ricardo Calil

No livro "Roberto Carlos em Detalhes", a famosa biografia proibida do Rei, o autor Paulo César de Araújo descreve assim a visão dos artistas da Música Popular Brasileira sobre a Jovem Guarda no começo da explosão do movimento: "Na época, ainda não era aceitável que um cantor-compositor brasileiro pudesse fazer rock. Era algo considerado uma anomalia, e assim deveria ser tratado e corrigido. Portanto, a única solução possível para os roqueiros seria convertê-los à 'música brasileira'."
Foi isso que Chico Buarque e Geraldo Vandré tentaram fazer com Roberto Carlos em um dos episódios mais folclóricos – e menos lembrados – da rixa entre MPB e Jovem Guarda. Na edição de 10 de dezembro de 1966 da revista "Manchete", Chico e Vandré entrevistaram Roberto, tentaram "curar" o Rei do seu vício em iê-iê-iê e recomendaram um tratamento à base de muita MPB. O título da matéria? "A Frente Ampla da Jovem Guarda" – uma referência ao manifesto político que naquele momento unia os antigos adversários políticos João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda contra a ditadura militar.
A entrevista é impagável. Mas, antes, um pouco de contexto. Em 1966, a popularidade de Roberto havia explodido com a música "Quero que Vá Tudo Vá pro Inferno" e com o programa "Jovem Guarda". A MPB torceu o nariz e acusou Roberto, e a turma do iê-iê-iê como um todo, de fazer música alienígena e alienada, desvinculada dos ritmos nacionais e despreocupada com a ditadura militar.
Dois meses antes da entrevista, em outubro de 1966, o mítico II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record tratou de juntar os três artistas no mesmo evento. Chico e Vandré foram os grandes vencedores com o famoso empate entre "A Banda" (composta pelo primeiro e defendida por ele ao lado de Nara Leão) e "Disparada" (composta pelo segundo e interpretada por Jair Rodrigues). Mas Roberto também se sobressaiu ao cantar bem à vontade duas músicas fora do repertório do iê-iê-iê: "Anoiteceu" (de Vinícius de Moraes e Francis Hime) e "Flor Maior" (Célio Borges).
Animado com os elogios de seus adversários da MPB, Roberto pensou em propor a sua gravadora CBS a ideia de gravar um LP com repertório de "música brasileira". Logo depois do festival, ele comentou sobre o disco com Nara Leão, que se tornou a principal incentivadora do projeto. Foi a partir desses bastidores que a "Manchete" decidiu promover o encontro entre Chico, Vandré e Roberto. "Os dois estavam ali para completar o serviço de Nara. Ou seja, aliciar o ídolo da Jovem Guarda para as hostes da MPB. E não apenas para gravar um disco: a missão deles era atrair Roberto Carlos definitivamente para o time da música brasileira", escreve Paulo César de Araújo.
A entrevista é repleta de metáforas sobre futebol – e, mais especificamente, sobre a ideia de mudar de time. Chico começa perguntando se Roberto iria mesmo gravar um disco com repertório "nacional". O rei responde: "Acho que preciso ter muito cuidado, por já estar num gênero e de repente começar em outro. Não sei se teria de começar tudo de novo ou pegar a coisa pela metade. Seria assim um..." Antes que ele continuasse, Chico Buarque completa: "Um jogo?". "É. Um jogo", confirma Roberto. "E você não gosta de jogar?", pergunta Chico. "Gosto", responde Roberto. "Então, por que não entra no nosso jogo?", provoca Vandré. "Estou na dúvida", confessa o cantor.
Adiante na entrevista, Chico pergunta: "Você concorda com o empate de 'Disparada' com 'A Banda'?" E Roberto responde de primeira: "É o primeiro empate de dois caras que jogam no mesmo time."  É a deixa para Vandré tentar novamente: "E nesse time tem camisa sobrando. É só você querer".
Em outros momentos, Vandré deixa a metáfora de lado e tenta acuar Roberto com um ataque direto. "Você não acha que o grande prestígio que tem, sua grande popularidade, colocado a serviço da música popular brasileira, traria um grande benefício para ela?". Roberto rebate: "Fazer música, para mim, embora viva disso, não é um negócio. A música é a música. Ela não deve ser feita para servir a outros interesses. Ao menos a minha, eu só faço quando tenho vontade e do jeito que tenho vontade."
Aí começa o momento mais tenso da entrevista. Sem aceitar a ideia da música pela música, Vandré questiona se Roberto não estaria ganhando dinheiro demais com a profissão. "Não posso me queixar. Mas não componho para faturar. Se faturo, é outro problema", responde o Rei. Chico tenta tirar onda de Roberto: "De qualquer forma, deve ser bom faturar como você". E leva uma invertida do Rei: "Sei que seu cachê até o Festival era perto de 500 contos, não é, Chico? Sei também que vai ganhar três milhões e meio para cantar em Paranaguá. De modo que também estou em situação de perguntar: 'é bom faturar, Chico Buarque?' Chico acusa o golpe: "Bem, lá isso é. Essencial é que não". Roberto vira o jogo de vez mirando em Vandré: "Seu nível de vida não é dos piores". Vandré titubeia: "Minha vida não é das melhores, não. E tenho outra profissão. Fiscal da Sunab."
O resto da entrevista é mais ameno. Mas os embaraçados Roberto e Chico não escondem seu desconforto e a vontade de chegar ao fim. Apenas Vandré parece à vontade no encontro. Ao final, Chico pergunta: "Você vai ou não vai gravar música brasileira? Pediu ou não pediu a Nara para te ajudar a escolher o repertório?" E Roberto responde: "Pedi. Nós conversamos a respeito. Então eu falei: 'Nara, já pensou? Eu gravar uma música do Chico?' E ela respondeu: 'Que é que tem isso demais? Grava!' E eu já falei com a gravadora para lançar um disco meu totalmente dedicado à música brasileira". Vandré se entusiasma: "Ótimo!" Chico entrega os pontos: "Acho que chega, não?" E Roberto se alivia: "Graças a Deus."
No final das contas, o projeto do disco de MPB não vingou, não por culpa de Roberto, mas de seu produtor Evandro Ribeiro. Segundo Paulo César de Araújo, o gerente-geral da CBS "dizia para Roberto não dar ouvidos àquele pessoal da música brasileira, que tinha era inveja e receio de seu sucesso, e queria Roberto Carlos ao seu lado para mais facilmente tentar anulá-lo".
Em trecho de entrevista para o documentário "Uma Noite em 67", realizada em 2009 e não incluída no filme, Chico diz se lembrar da matéria da "Manchete" e tenta se justificar dando o contexto da época: "Falavam que o Roberto fazia música estrangeira. E ele tinha começado como cantor de bossa nova. Existia uma discriminação aí. Eu sempre gostei do Roberto e das músicas dele. Não era a música que eu fazia, era outro tipo, mas isso não importava, não era uma questão ideológica, nunca levei a esse ponto."
Já Roberto, em entrevista ao mesmo documentário (do qual o autor deste texto é um dos diretores), tenta colocar panos quentes na rivalidade entre Jovem Guarda e MPB. "A gente via isso numa boa. Quando a gente ouvia alguma coisa a respeito, dizia: 'Puxa vida, mas o povo gosta disso que a gente está fazendo, acho que a gente não tem que se preocupar muito com isso, não'". Mas, em 1966, a visão de Roberto era bem diferente, como mostra uma das raras declarações bombásticas do Rei resgatada por Paulo César de Araújo: "Fizeram um cerco em torno de mim que às vezes me angustia! Muitos falam mal de mim. Tenho muita mágoa do pessoal de música brasileira." Mas Roberto abre uma exceção: "Um dos poucos de quem não tenho mágoa é do Chico Buarque de Hollanda, que me parece um ótimo sujeito".
                       RC recebe Gil, após polêmica da guitarra elétrica
Sete meses depois da entrevista na "Manchete", em 17 de julho de 1967, a rixa entre MPB e Jovem Guarda chegaria a seu momento mais explícito, na emblemática "passeata contra a guitarra elétrica", com a participação de, entre outros, Geraldo Vandré, Elis Regina e Gilberto Gil. No festival da Record daquele mesmo ano, Gil cantaria acompanhado de guitarra em "Domingo no Parque", assim como Caetano Veloso em "Alegria, Alegria". Foi o suficiente para Evandro Ribeiro, produtor de Rei, comentar ironicamente: "Está vendo, Roberto? Eles queriam que você aderisse à música brasileira. Agora estão aí aderindo ao iê-iê-iê e se dando bem." (Fonte: aqui).

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Hoje, 22, comemoram-se os cinquenta anos da estreia do programa 'Jovem Guarda' na TV Record SP. Saudades do rock ingênuo, e palmas para os astros.

Nota: Clique aqui para ler "Os Brasas e a cena de Jovem Guarda no Rio Grande do Sul". 

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