sábado, 29 de agosto de 2015

NAVA NOEL: ENCONTRO DE TITÃS


O encontro de Pedro Nava e Noel Rosa em BH no carnaval de 1935

Por Sebastião Nunes

– Saco! – resmungou Pedro Nava ao entrar no Café Estrela e encontrar as mesas vazias. Era sábado de carnaval e fugira do Rio para rever os amigos. Pediu um chope, que bebeu encostado no balcão, contando nos dedos: Mário Casassanta, Guilhermino César, Ascânio Lopes, Gustavo Capanema, Aníbal Machado, Abgar Renault, Emílio Moura, João Alphonsus, Milton Campos, Afonso Arinos... Parou em 10. Nenhum deles e nenhum dos outros. De tanta gente conhecida, ninguém.

            – Que foi que houve, Olímpio? – perguntou ao garçom. – Parece que a cidade está morta. Aqui era mais animado antigamente.

            – É carnaval, né, doutor Nava? Durante o dia fica animado, mas, a essa hora, só nos clubes ou nos bares. Se procura seus amigos, pode esquecer. Nunca aparecem nos sábados e domingos.

            Como diria décadas depois Fernando Brant, “sábado é dia de amador”, ele, que só frequentava bar de segunda a sexta.

            – Então o que é que faço, Olímpio? Não posso ficar aqui sozinho, enchendo a cara. Ninguém tem telefone e não quero ir na casa deles. Me dá um conselho.

            – Por que o senhor não vai pra um cabaré? Tem o Elite na Avenida Bias Fortes, o Montanhês na Rua Guaicurus...

            – Grande ideia! Dá pra você chamar um táxi? Montanhês, aqui vou eu!

DENTRO E FORA DO TÁXI

            Enquanto descia rumo à zona, Nava rascunhou num pedaço de papel um bilhete para os amigos ausentes: “O que há de terrível na vida mundana é a perda de tempo – a troca inútil de visitas, jantares e almoços de cortesia, as obrigações de missas de sétimo dia, de casamentos, ação de graças, bodas de ouro e prata. Velórios. Tudo isto é motivo de encontros tantas vezes desagradáveis, com outros que não os verdadeiros amigos, sobretudo nas casas cujos anfitriões fazem inevitavelmente ímpares, convidando para refeição e pondo juntos, à mesa, pessoas que reciprocamente teriam vontade de se verem – uma no enterro da outra”.

            Esboçou um sorriso. “Não está ruim”, pensou relendo o falso bilhete. “Vale como treino. Se um dia escrever memórias, aí está um bom começo. O diabo é que não encontrei nenhum dos amigos verdadeiros, nem pra remédio”!

            Desceu, pagou e respirou o ar carregado de fumo e álcool. Cafetões de sapato preto e branco vigiavam nas esquinas. Mulheres seminuas iam e vinham rebolando. Homens tímidos de todas as idades olhavam disfarçadamente, escolhendo. Bares cheios, vidas vazias. “Puta merda!”, sentiu um arrepio e franziu a testa. “Preciso tomar cuidado com frases de efeito. Ser modernista não dá o direito de filosofar besteira”.

            Passou pelos leões de chácara, um de cada lado da porta, e entrou no Montanhês. Um tango sincopado e langoroso marcava o tempo. A mistura de vozes, risos e gritos dava a impressão de mercado. Subiu os doze degraus sagrados do grande templo da boemia belo-horizontina. Deu de cara com o enorme salão, tão seu conhecido de tantos porres memoráveis. Casais de dançarinos profissionais se enlaçavam com seriedade, seguros da própria exibição. Em volta, neófitos desajeitados imitavam os movimentos dos mestres. Nava bocejou: o mesmo de sempre.

GAGO APAIXONADO

            De repente ouviu ali perto, o som elevando-se acima da orquestra:

            Mu-mu-lher em mim fi-fi-zeste um estrago.
            Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago...

            Não entendeu o restante. Viu, numa mesa próxima, um rapaz desconhecido e três mulheres novas e bonitas. O cantor batucava numa caixa de fósforos e parecia indiferente ao tango e ao burburinho.

            “Estranha queixada para um cantor”, constatou o médico Nava. “Esse sujeito tem a mandíbula diminuída. Deve ser a Síndrome de Pierre Robin, coitado. Quase com certeza foi no parto. É feio, mas simpático. Pelo jeito as moças estão se divertindo”. Aproximou-se para ouvir melhor.

            Te-teu co-coração me entregaste
            De-de-pois-pois de mim tu o to-toma-maste
            Tu-tua falsi-si-sidade é pro-profunda
            Tu tu tu tu tu tu tu tu
            Tu vais fi-fi-ficar corcunda!

            Nava riu alto e a turma da mesa o encarou. Não teve outro jeito senão se apresentar com um sorriso, estendendo a mão ao rapaz de queixo curto.

            – Muito prazer. Meu nome é Pedro Nava. Ouvi sem querer e achei engraçado.

            O rapaz sorriu de volta. Parecia acostumado a interrupções.

            – Prazer. Noel Rosa. Puxe uma cadeira se estiver sozinho. Estas são Aracy, Marília e Juraci, velhas amigas.

PAPO QUE VAI, PAPO QUE VEM

            Nava puxou uma cadeira. Noel pegou um copo, encheu e entregou ao recém-chegado. Bebiam cerveja.
          
            – Se quiser uma cachacinha é só pedir ao garçom – disse Noel. – A mistura esquenta e sobe rapidinho. À saúde de vocês. Não brindo à minha porque vai de mal a pior. – E fez uma careta engraçada, como se brincasse consigo mesmo.

            – Nunca te vi por aqui – disse Nava. – Tenho vindo pouco porque me mudei pro Rio. Mas de vez em quando apareço com uns amigos.

            – Que puta coincidência! – espantou-se Noel. – Sabe que sou carioca? Só estou aqui em tratamento. Enquanto me trato, me divirto.

            – Sei que não é lugar pra isso, mas sou médico e fiquei curioso. Posso saber o que você tem?

            – Nada de grave – brincou Noel. – Só uma tuberculose avançada. O clima de Belo Horizonte é considerado bom para o meu caso, então me expulsaram pra cá.

            – E você, doente como está, passa a noite bebendo?

            – Bebendo só, não. Hoje mesmo cantei na Rádio Guarani. Como minha mulher está grávida e é menor, ficou em casa. Então aproveito pra namorar. Beber é só uma forma de ficar alegre. E ajuda com as namoradas, não é mesmo, garotas?

            – Então vamos beber, se você quer assim.

            Nava ergueu o copo e brindaram. Depois continuou:

            – Gostei bastante do que estava cantando. Muito original. Não parece com os sambas que conheço. Nada de sentimentalismo barato.

            – Não, mesmo – disse Noel. – Nem um pouco sentimental. Já imaginou um cara doente como eu cair no sentimentalismo? Ia pro buraco depressinha.

            – E gastando as noites na farra, não vai do mesmo jeito?

            – Ah, não, seu doutor! Conselho, não. Se quer beber com a gente, tudo bem. Mas se é pra me botar pra baixo, esquece.

            – Desculpe, Noel – arrependeu-se Nava. – Não tive intenção. Deve ser a força do hábito. Mania de consultório, sabe como é? Então vamos esquecer e voltar ao que interessa. Tenho muitos amigos escritores e foi por isso que resolvi passar o carnaval em Belo Horizonte. Só que não encontrei ninguém. Você compõe muito? Tenho a impressão de que já vi seu retrato em alguma revista, mas não tenho certeza. Que música estava cantando quando cheguei?

            O rosto de Noel se iluminou.

            – Ah, é um sambinha humorístico. “Gago apaixonado”. Já compus mais de 100 músicas, talvez umas 200, nem sei direito.

            – Mas você é muito novo. Não deve ter nem 25 anos – disse Nava.

            – Tenho 26, mas comecei cedo, componho desde os 19. Estudei medicina um ano e parei. Também já gravei vários discos. Sozinho ou com parceiros. Sabe que é divertido, compor e cantar? Escute esta. E voltou a cantar, com sua voz fraca e afinada, acompanhado pela caixa de fósforos. As garotas marcavam o ritmo tamborilando na mesa. Nenhum deles ouvia a orquestra. O Montanhês era um palco iluminado, e era todo deles naquele momento.

            Eu hoje estou pulando como sapo
            Pra ver se escapo desta praga de urubu
            Já estou coberto de farrapo
            Eu vou acabar ficando nu
            Meu terno já virou estopa
            E eu nem sei mais com que roupa
            Com que roupa que eu vou
            Pro samba que você me convidou

            “Esse cara é um gênio” – espantou-se Nava. “Como é que nunca ouvimos falar dele? Eu não ouvi, nenhum amigo me falou nada. Será preconceito nosso?”

            Saíram dali os dois, bastante altos, horas depois. Levavam uma garrafa de cachaça, que bebiam no bico. Subiram a Rua São Paulo, continuaram pela Avenida Afonso Pena, desceram a Rua Tamoios, passaram ao lado do Parque Municipal e entraram debaixo do viaduto. Fedia o velho fedor ardido. Mendigos dormiam enrolados em pano sujo e jornal. Sentaram-se num canto e continuaram o papo e a cantoria – principalmente a cantoria –, que só terminou quando apareceu um guarda desconfiado, ordenando que fossem curtir a ressaca em casa. O sol despontava entre fiapos de nuvens. Nunca mais se viram. Estranhamente, o memorialista Pedro Nava jamais registrou o encontro em seus livros. Tantos anos depois, persiste o mistério: por que o esquecimento voluntário?
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(Fonte: aqui).

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