sexta-feira, 3 de julho de 2015

O QUE EMPURROU A ECONOMIA GLOBAL PARA FORA DA CURVA


O futuro está mais opaco do que costumava ser

Por Antonio Delfim Netto

A economia mundial enfrenta uma desarticulação só experimentada nos anos 30 do século passado. A crise de 2007-­09 teve origem em causas que não são as flutuações cíclicas do capitalismo. Numa larga medida, trata­-se das mesmas, ­ ou muito parecidas,­ que geraram a de 1929, que, nos EUA, o governo Roosevelt combateu com profundas intervenções na economia (o "New Deal"). 

Uma delas foi a resposta do Congresso, que sob estímulo do Executivo, aprovou o "Glass-­Steagal Act", de 1933. Proibiu-­se os bancos comerciais de financiar investimentos: foram limitados à recepção de depósitos e a empréstimos de curto prazo. Aos bancos de investimento foram reservadas as negociações com as ações e bônus, formas típicas de financiamentos de longo prazo.

Quais os motivos? O mais importante foi a descoberta que alguns banqueiros importantes, que operavam simultaneamente o curto (comercial) e o longo (investimento) prazos, aproveitando-­se de informações internas ("insider trading") tinham desenvolvido comportamentos eticamente condenáveis. No fim do dia, eles teriam produzido ou, pelo menos, agravado, a depressão. 

Quem não estiver convencido deve ler o famoso "Relatório Pécora", que resultou do inquérito feito pelo Congresso americano. Ele revelou os riscos para a estabilidade econômica que estavam escondidos na expansão de um sistema financeiro absolutamente desregulado, o mesmo que se recriou a partir de 2000, como veremos a seguir.

Todos sabemos que um eficiente e competitivo sistema financeiro é elemento essencial para mobilização das poupanças que financiam o investimento, alma do crescimento econômico. Tudo bem considerado, entretanto, foi visível até os anos 80 do século passado que, apesar de ter prevenido uma outra "grande depressão", as restrições impostas pelo "Act de 1933" não eliminaram a repetição dos "ciclos de negócios" ínsitos na organização econômica das sociedades através dos "mercados" e não impediram um crescimento razoável.

Entre 1950 e 1990, a economia dos EUA revelou oito "ciclos de negócios". Num período de 160 trimestres, houve retração em 25 deles, seguidos de retorno à normalidade num tempo um pouco menor (20), com uma queda média de PIB, em cada episódio, da ordem de 2,2%. A depressão de 2007-­09, que se seguiu à "grande moderação" que o mundo viveu por 17 anos a partir de 1990, assumiu características claramente diferentes delas: começou no quarto trimestre de 2007, foi considerada encerrada no segundo trimestre de 2009 e consumiu 4,3% do PIB. O problema é que hoje, 26 trimestres depois de ter passado por seu ponto de mínimo, ainda não assistimos a uma recuperação convincente. E ninguém sabe como vai terminar o enorme esforço fiscal e monetário feito para enfrentá-­la.

É importante reconhecer que a eficácia da corajosa e enérgica operação rooseveltiana dos anos 30 nunca pode ser avaliada, porque a emergência da Segunda Guerra alterou tudo. A mobilização da "máquina de guerra", a partir de 1939, fez deslanchar a economia americana até a volta do primeiro "ciclo de negócios" após a paz: do segundo trimestre de 1953, quando terminou a guerra da Coreia, até o primeiro trimestre de 1954.

Se a crise de 2007­-09, que insiste em não terminar, tem a mesma origem que a de 1929, é preciso perguntar: Como isso foi possível? A resposta é que, nos anos 90 do século passado, o sistema financeiro começou a libertar­-se da regulação imposta nos anos 30, alegando que ela "prejudicava o desenvolvimento econômico". Com apoio no Congresso e suporte "científico" inventado "ad hoc" por uma tribo de economistas, cujos membros enganam-se e divertem­-se mutuamente com o conforto do "mercado perfeito" (até na moralidade!), teve sucesso. E muito lucrativo...

Assistiu-­se, assim, em 1999, a revogação final do "Glass­-Steagal Act", de 1933. Pois bem, em menos de dez anos, o novo sistema financeiro,­ agora outra vez completamente desregulado,­ voltou ao local do crime. Promoveu, ou pelo menos ajudou a promover, a maior crise econômica da economia real dos últimos 75 anos.

A verdade é que como não sabemos como terminaria a crise de 1929 na ausência da preparação para a Segunda Guerra, continuamos a não saber como terminará a crise em que vivemos. Aparentemente, ela deixou uma desorganização que se manifesta na redução da capacidade política e do produto potencial de todas as sociedades, consequências da continuidade do absoluto domínio das finanças sobre a produção de bens e serviços, que até agora os governos foram incapazes de corrigir. É visível, por exemplo, a desorientação do FED, que tem titubeado (e faz bem, porque as informações são contraditórias) diante do temor de uma recidiva, como aconteceu em 1937, quando antecipou sua manobra sobre a taxa de juros.

Foi essa incerteza que tirou da gaveta o fantasma da "estagnação secular" criado por Alvin Hansen em 1939 e recuperado por Larry Summers em 2013. O Brasil, pelo recente comportamento de seu Congresso, parece querer flertar com ela... (Fonte: aqui).

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Em qualquer análise que se faça a respeito do assunto acima, é preciso oferecer generoso espaço para o governo Ronald Reagan, que patrocinou a total desregulamentação da ação dos bancos comerciais e de investimento, na esteira do receituário concebido pelo economista inglês John Williamson. Não manjo de economia, não sou economista, apenas me interesso pela área. Pelas muitas análises que li ao longo dos anos, entretanto, parece-me indispensável considerar a vertente citada, que originou a frouxidão operacional que permitiu o festival de irregularidades praticadas por bancos e financeiras ao redor do mundo, com as famosas hipotecas sem lastro e os derivativos tresloucados. O pior: constatado o desastre, os bancos e financeiras se safaram numa boa, recebendo generosos empréstimos estatais para sobreviver, em razão de um bem vindo "risco sistêmico": eles seriam "grandes demais para quebrar". Por conta do que os cidadãos em geral tiveram de arcar com as consequências, o que até hoje perdura, como se observa na Grécia, Portugal, Itália, Espanha etc, com reflexos que agora repercutem com certa intensidade no Brasil.

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