segunda-feira, 11 de maio de 2015

HABERMAS, O BRASIL E A CONJUNTURA


Sobre Jürgen Habermas e o Brasil de 2015

Por Renato Santos de Sousa

O tolo ignora o “todo” ou supõe o todo a partir da sua própria parte. O cínico conhece o todo, mas desconsidera-o por interesse ou conveniência; o ingênuo sonha ser possível desprezar o todo, ou mudá-lo apenas a partir das partes, por ato de pura vontade.

Para fazer ou pensar a política sem a superficialidade dos tolos, a falsidade dos cínicos ou o voluntarismo dos ingênuos, é preciso entender os limites da própria política e das ações dos governos face à totalidade em que estão inseridos.

O filósofo alemão Jürgen Habermas, um dos mais importantes intelectuais e humanistas do século XX, disse certa vez, em entrevista à Bárbara Freitag e Sérgio Pulo Rouanet, nos idos anos de 1995: “devo confessar que, desde 1989, lamentei pela primeira vez não ser economista”. Para ele, com o processo de globalização da produção e do mercado de capitais, “o Estado Nacional, visivelmente, já não controla as condições de produção da sua própria economia. Temos hoje uma globalização do mercado de capitais que afeta as condições de produção, provocando uma generalização e globalização da própria produção, cujas condições perderam seu caráter nacional” (Folha de São Paulo, 30/04/1995).

E arrematou, entre o desolamento intelectual e a chama da ânsia criadora que teima em arder no coração dos gênios: “falta hoje uma teoria do capitalismo, a teoria que reflita sobre as capacidades políticas e de ação que precisam ser construídas em nível global para domesticar e eventualmente refazer este sistema econômico”.

O profético Habermas, embora falando das condições da Europa há vinte anos, fala também para um Brasil de 2015, onde boa parte dos discursos políticos, entre tolos, cínicos e ingênuos – uns mais a direita, outros mais a esquerda -, cobram um tipo de autonomia governamental em relação às condições econômicas globais, e mesmo nacionais, que visivelmente já não temos há um quarto de século.

E é incrível como o filósofo que nos devolveu a crença nas possibilidades da razão, com sua teoria da ação comunicativa, que desvelou como os sistemas colonizam o “mundo da vida” nas sociedades modernas, estruturando a realidade cotidiana, sentia-se atônito frente ao automatismo das forças de mercado decorrentes da globalização dos capitais, e de como elas engoliram a autonomia política dos governos nacionais. E lamentava, por isto, não ser economista, para poder entender melhor e teorizar sobre este sistema, nos devolvendo também, quem sabe, uma nova possibilidade não só de fazer política econômica, mas de fazer política.

De lá para cá, nada se fez em governança global para conter a liquidez dos mercados e devolver a capacidade dos estados nacionais controlarem suas economias; ao contrário, a crise de 2008, iniciada nos EUA, se espalhou pelo mundo, tomando de assalto, mais recentemente, inclusive o continente europeu. Exatamente para mostrar que a crise de autonomia dos estados nacionais não é apenas das chamadas “economias emergentes”, mas também das potências que estão no centro da dinâmica capitalista mundial.

Dado o contexto de uma economia globalizada, o Brasil respondeu às crises recentes com relativo sucesso, por meio de uma série de medidas “contra cíclicas”, como definem os próprios agentes governamentais, baseadas, keynesianamente, em aumento dos gastos governamentais e desonerações fiscais. Mas como em economia não existe almoço grátis, já dizia Milton Friedman (ironicamente, o pai dos economistas monetaristas), o custo está sendo pago agora, com o ajuste fiscal de 2015. Nestes termos, a atual política econômica é mais uma imposição que uma opção.

Habermas disse também, em 1995, que se pode ver “como isto é sério quando acompanhamos o desenrolar de nossos conflitos trabalhistas e verificamos que nossos custos salariais e colaterais, que constituem um elemento importante de nosso sistema de segurança social (o europeu), não nos permite competir no mercado internacional de trabalho. Em consequência, fala-se cada vez mais na reestruturação do Estado Social, o que, para a maioria, significa simplesmente a sua desestruturação”.

Portanto, o retrato do que se vê acontecer na própria Europa, hoje, é a superfície aparente de um conflito interno ao sistema econômico capitalista contemporâneo que vem sendo travado há décadas, e que coloca em rota de colisão a autonomia do Estado do Bem Estar e a internacionalização das forças produtivas e do mercado de capitais.

Como nenhuma medida de governança global foi tomada dos anos 90 para cá e nada mudou no mundo concreto, senão que a própria crise de autonomia dos estados nacionais se aprofundou mais ainda (e hoje a Europa se vê mergulhada nela), muitoS dos discursos políticos sobre a crise e a mudança na política econômica brasileira em 2015, novamente enredados entre a tolice, o cinismo e a ingenuidade, semeiam fantasias e desinformação, e colhem ignorância e intolerância.

Como pode a esquerda marxista, por exemplo, que já fora materialisticamente determinista, que cultivou ideias supostamente científicas sobre como a lógica do sistema, do mundo concreto, se sobrepõe às vontades individuais ou mesmo de classe – a ponto de só restar às classes desvalidas a práxis revolucionária -, e sobre como a práxis é contingente ao contexto do mundo material, pode cobrar que o governo brasileiro simplesmente vire as costas para as condições econômicas globais e para os chamados “mercados”, em favor de uma agenda exclusivamente nacional, num simulacro de autonomia que evidentemente não existe mais?

E como pode a oposição conservadora, representada pelo PSDB, atribuir apenas às práticas governamentais dos últimos anos as condições da suposta crise atual brasileira e do ajuste fiscal que foi realizado, quando o próprio FHC, quando foi governo, atribuía todas as mazelas que o país passou entre 1995 e 2002 a sucessivas crises internacionais, e exatamente a esta falta de autonomia das políticas nacionais frente à globalização financeira.?

Estão vivas, ainda, por exemplo (e podem ser encontradas disponíveis em vídeo completo  na internet), as palavras do Ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso em Florença, na Itália, na Progressive Governance Conference (reunião dos países da chamada “terceira via”), clamando por uma política internacional de controle do fluxo de capitais (“por que não pensar em uma taxa sobre capitais voláteis?”, disse ele na época). E dando o exemplo de como perdemos US$ 10 bilhões de reservas cambiais em um só mês com a crise do México e US$ 20 bilhões em outro mês com a crise da Rússia, tendo as taxas de juros chegado a 45% ao ano após a desvalorização do Real de 1999, FHC apresentou o Brasil como um caso trágico desta consequência devastadora da globalização financeira sobre as economias nacionais.

Cinismo de um lado, ingenuidade de outro, acrescentam-se àqueles que constroem discursos tolos na completa ignorância em relação à totalidade da economia mundial, supondo o Brasil uma ilha de autonomia e o Governo uma ilha de poder.

Atualmente, não é a eficácia da ação e da política econômica que divide os governos entre progressistas e conservadores, embora estas possam se diferenciar ligeiramente entre estes dois tipos ideológicos. Se o fato de um governo ser progressista ou conservador, de esquerda ou de direita, representasse melhor ou pior desempenho econômico, maior ou menor eficácia da política econômica, faríamos escolhas técnicas, não políticas. Mas, lamentavelmente, o desempenho das economias nacionais não depende mais apenas dos governos, tampouco as políticas econômicas que eles implementam são apenas atos de vontade, baseadas em convicções de valor tão somente. Então, o que os diferenciam são as prioridades, as agendas políticas, e o que eles estão dispostos a sacrificar ou não ante as contingências globais.

Compreender os limites da ação política e do poder dos governos, bem como o sentido progressista ou conservador das diferentes agendas políticas e das prioridades governamentais, e de como elas se expressam em matérias diversas, que vão desde o marco civil da internet, a democratização da mídia, a terceirização das atividades fim, as políticas de cotas nas universidades, até as políticas de reforma agrária, por exemplo, é fundamental não só para fazer escolhas consistentes, como para não criar discursos tolos, cínicos ou ingênuos.

Isto é mais do que Habermas falando dos efeitos da economia global: é, provavelmente, o que Habermas teria a dizer sobre ação racional e razão comunicativa, para um Brasil de 2015 que flerta perigosamente com o obscurantismo. (Fonte: aqui).

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"(...) o desempenho das economias nacionais não depende mais apenas dos governos, tampouco as políticas econômicas que eles implementam são apenas atos de vontade, baseadas em convicções de valor tão somente. Então, o que os diferenciam (os dois tipos ideológicos, representados pela situação e oposição brasileirossão as prioridades, as agendas políticas, e o que eles estão dispostos a sacrificar ou não ante as contingências globais."

Concordo plenamente - e acrescentaria: Daí, por exemplo, a preocupação do governo federal em preservar os programas sociais...

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