sexta-feira, 15 de maio de 2015

EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS: A DITADURA DE BANCOS E FINANCEIRAS


Decisão do TJDFT legitima escravidão financeira dos correntistas assalariados

Por Alessandre de Argolo

Em recente acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) no julgamento de um recurso de apelação interposto por servidor público titular de cargo comissionado do Governo do Distrito Federal, lançou-se uma tese que, se criar escol no direito brasileiro, pode acabar por legitimar o que eu chamo de escravidão financeira daqueles correntistas pessoas físicas cuja única fonte de renda sejam os seus vencimentos ou salários creditados mensalmente em conta corrente.

O caso concreto versa sobre situação em que o servidor público, cujo salário bruto era de R$ 2.545,75 (dois mil, quinhentos e quarenta e cinco reais e setenta e cinco centavos), já contabilizado o auxílio alimentação, teve ilegalmente concedidos pelo banco nove empréstimos, em várias modalidades, entre eles, empréstimos consignados e empréstimos cujas parcelas eram debitadas do saldo da conta corrente, cujo montante do saldo devedor somava, à época da propositura da ação, o valor de R$ 32.636,77 (trinta e dois mil, seiscentos e trinta e seis reais e setenta e sete centavos).

O motivo da propositura da ação foi que, durante cinco penosos meses, o servidor público em questão ficou praticamente com o saldo zerado na data do recebimento do salário, uma vez que o banco debitava unilateralmente todas as parcelas dos empréstimos concedidos, inclusive as parcelas em atraso, empréstimos estes que foram tomados em várias modalidades, tais como Crédito Direto ao Consumidor (CDC), adiantamento de salário etc.

Buscava-se com a ação, principalmente, uma revisão dos contratos dos empréstimos, de modo que as parcelas debitadas sobre a renda líquida mensal (renda creditada na conta corrente após os chamados descontos compulsórios - INSS, Imposto de Renda, Plano de Saúde - e os descontos referentes às parcelas dos chamados empréstimos consignados em folha de pagamento, aqueles cujas parcelas são debitadas diretamente no contracheque) ficassem limitadas a 30% (trinta por cento) da renda líquida mensal do servidor público, analogamente à previsão legal que expressamente determina que os empréstimos consignados não podem ultrapassar esse percentual da renda mensal do correntista assalariado (podem ser citados como exemplos, o inciso VI do art. 115 da Lei nº 8.213/1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências, e o inciso I do § 2º do art. 2º da Lei nº 10.820/2003, que dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências).

Além desse pedido revisional, que busca racionalizar a forma de pagamento dos empréstimos de um modo que conserva ou garante a dignidade da pessoa humana do devedor (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), evitando uma situação que deixa o correntista sem recursos para sequer comprar comida para sobreviver, pedido de revisão feito com fundamento nos arts. 6º, inciso V, e 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), tendo como norte o inciso V do art. 170 da Constituição Federal, que introduziu no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro o princípio geral da atividade econômica consistente na defesa do consumidor, a ação pedia uma indenização por danos morais, considerando os cinco meses em que o servidor público teve a sua renda líquida mensal integralmente comprometida pelos débitos das parcelas dos empréstimos feitos diretamente sobre o saldo de sua conta salário. Por fim, a ação requereu que os valores que ultrapassaram o limite de 30% (trinta por cento) da renda líquida mensal do servidor público fossem devolvidos em dobro ao consumidor ou, caso assim fosse entendido pelo Poder Judiciário, que houvesse a devolução simples dos valores excedentes.

A ação foi ajuizada com pedido liminar de suspensão dos lançamentos em patamares abusivos, de forma a que eles ficassem limitados a 30% da renda líquida mensal, pois a situação do correntista era periclitante: sem dinheiro para sobreviver, ele teve um pedido de renegociação do débito negado pelo banco, que disse que só faria o contrato de renegociação (juridicamente se chama novação do débito) se o correntista apresentasse um fiador para o novo contrato que consolidaria o saldo devedor, isso quando nenhum fiador foi exigido do servidor público quando o banco em tela inicialmente e ilegalmente concedeu os empréstimos. Como o servidor público não conseguiu arranjar o fiador, o banco negou o contrato de renegociação do débito.

Posta a situação nestes termos, o juiz de primeira instância negou o pedido liminar, sob o argumento de que, ao contrário dos empréstimos consignados, os empréstimos cujas parcelas mensais são debitadas diretamente no saldo da conta salário não sofrem qualquer limitação e é suficiente a autorização registrada no contrato para legitimar o banco a fazer o que fez, independentemente do fato do correntista ficar sem renda para sobreviver com dignidade.

Obviamente irresignado com essa decisão, o servidor público interpôs recurso de agravo de instrumento, o qual foi parcialmente acatado pelo TJDFT, por meio de decisão de lavra do desembargador Sérgio Rocha, que, numa decisão monocrática lúcida, citando jurisprudência do STJ e em estreita consonância com os ditames constitucionais, limitou os lançamentos das parcelas dos empréstimos feitos diretamente sobre o saldo da conta corrente a 30% da renda líquida mensal, de forma análoga ao que exige a lei quando se debruça sobre os empréstimos consignados.

Como corretamente observou o eminente desembargador relator do agravo de instrumento interposto pelo servidor público contra a primeira decisão interlocutória que havia indeferido a liminar de suspensão dos lançamentos dos débitos abusivos, os limites de comprometimento da renda do consumidor que atuam em relação às parcelas dos empréstimos consignados em folhas de pagamento devem ser observados também quando se trate do comprometimento da renda líquida mensal para fins de pagar as parcelas daqueles empréstimos que são debitados diretamente no saldo da conta corrente salário, ainda que por analogia, nos termos do art. 126 do Código de Processo Civil atualmente vigente, pois, conforme a feliz expressão do nobre desembargador relator daquele agravo de instrumento, "(...) onde a razão é a mesma, o mesmo deve ser o direito (ubi eadem ratio ibi eadem jus)".

Dessa forma, o banco foi intimado da decisão monocrática e a situação foi equacionada, com os débitos lançados diretamente em conta corrente se limitando ao patamar de 30% da renda líquida mensal creditada na conta salário, o que permitiu ao correntista viver com a dignidade necessária, ainda que com uma parte de sua renda seriamente comprometida. No entanto, após o regular processamento da ação, ultrapassada a fase da instrução, sobreveio a sentença, a qual resgatou o entendimento da decisão que inicialmente havia concedido ao banco o direito de continuar a debitar as parcelas dos empréstimos de forma abusiva. O correntista interpôs recurso de apelação e ela foi distribuída para a mesma Turma Cível para a qual o agravo de instrumento havia sido distribuído, porém, não se encontrava mais na turma o desembargador que havia deferido a liminar e o resultado do julgamento foi desfavorável ao consumidor bancário, num acórdão que, sem qualquer exagero, legitima a situação de escravidão financeira observada neste caso concreto. (...).

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Após tanto tempo decorrido desde a definição do patamar de 30% da renda líquida mensal como percentual máximo de comprometimento, custa crer que situações surreais como a acima relatada ainda se verifiquem.

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