terça-feira, 5 de maio de 2015

A FATIA DE REALISMO AMERICANO EM NOITE SEM FIM


"Noite sem fim" e o realismo em doses homeopáticas

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Há bem pouco tempo disse aqui mesmo no GGN que:
 
“Na terra dos sonhos, a vida da população norte-americana duplicada e abandonada à própria sorte nos túneis é um pesadelo que não será visto em filmes realistas. Há décadas o realismo cinematográfico norte-americano foi soterrado por HQs como 'Avengers 1 e 2' e por séries como 'Velozes e Furiosos 1,2,3,4,5,6,7...'. O problema é insolúvel no contexto do atual 'modo de vida norte-americano'. O sistema que produz empobrecimento e exclusão social nada pode fazer para reparar o mal produzido sem reconhecer seus próprios defeitos (coisa que é impensável nos EUA).”
 
Hoje sou obrigado a reconhecer que o renascimento do realismo cinematográfico norte-americano pode se tornar uma possibilidade. “Noite sem fim” foi destaque no G1, mas pelas razões erradas. Como sempre ocorre, aqueles que são pagos para fazer propaganda de cinema raramente tem tempo ou inspiração para meditar sobre os filmes e para os ver com atenção.
 
O roteiro de “Noite sem fim” é semelhante ao de “Estrada da perdição” (2002), produção baseada numa HQ ambientada nos anos 1930. O filme estrelado por  Liam Neeson, contudo, é ambientado nos dias de hoje. Um pistoleiro da máfia enfrenta policiais corruptos e seu chefe mafioso para salvar a preciosa vida do filho trabalhador. Ele mata várias pessoas, morre e o filho é salvo. Este filme seria  uma repetição banal de porradas, pauladas, batidas de carro, tiros, tiros e mais tiros não fosse por dois detalhes.

O primeiro pode ser creditado à nacionalidade de Jaume Collet-Serra. Sendo espanhol Collet-Serra não se deu ao trabalho de “casualmente” exibir bandeiras e mais bandeiras dos EUA no seu filme. “Noite sem fim” não se ajusta muito bem à estética nacional-socialista que domina o cinema norte-americano há algumas décadas.
 
O outro detalhe importante do filme, que não foi notado nem pelo G1 nem por outro crítico - falo isto pensando especificamente no website omelete - foram as cenas externas feitas ao acaso e que mostram uma realidade cotidiana que a estética nacional-socialista costuma esconder: desabrigados nas ruas de New York, pessoas revirando lixo na chuva e trabalhadores coletando e transportando materiais recicláveis produzidos durante o dia na mais glamourosa cidade dos EUA. A realidade, porém, entra no filme em doses homeopáticas.
 
As cenas externas colhidas por Collet-Serra provavelmente ao acaso - não me pareceu que os extras filmados durante a noite nas ruas estivessem seguindo um roteiro pré definido - conferem mais credibilidade ao filme. Não só isto, estas cenas externas documentam aquilo que os diretores de cinema norte-americanos julgam impossível de ser documentado e distribuído pela indústria de ilusão “made in USA”. Salvo raríssimas exceções, só temos visto produções que glorificam a bandeira azul e vermelha e um “American way of life” que praticamente deixou de existir desde o início da crise financeira.
 
“Noite sem fim” tem 2 ou três minutos de realidade que valem a pena ser vistos com cuidado. O resto é apenas droga visual produzida e distribuída por traficantes de imagens ambiciosos que desejam faturar alto satisfazendo os desejos mórbidos de pessoas viciadas em ultra-violência cênica. (Fonte: aqui).

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No Brasil, 'Noite sem fim' certamente proporcionará bons ganhos, dado o gosto do público por filmes de ação. Afinal, 97% da produção serão dedicados a tiros, perseguições e escaramuças diversas. 

Os campeões de bilheteria dos últimos tempos, em que se proliferam heróis cibernéticos e robôs trepidantes, em cenários futuristas, parecem deixar claro que em tempos de crise financeira aguda a realidade nua, crua e amarga não brilha tanto assim ao vir à tona...  

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