sexta-feira, 14 de novembro de 2014

SOBRE O SUPERÁVIT PRIMÁRIO


"O que os economistas de mercado chamam, pejorativamente, de “criatividade fiscal”, com o propósito explícito de expor ao mundo a “falta de transparência e de credibilidade” do Governo, não tem o menor efeito ou a menor importância macroeconômica. Ao contrário, é apenas a expressão ideológica da corrente central do neoliberalismo para a qual a economia é um conjunto de relações individuais dominadas, não por interesses reais, mas por “expectativas racionais” num mercado de acesso igualitário a informações.

Vejamos por partes. A crítica da “criatividade” diz respeito à intenção do Governo de esconder a queda do chamado superávit primário – o que a imprensa chama de “economia” para pagar o serviço da dívida pública. Para que serve esse superávit primário do ponto de vista ideológico? Serve, dizem eles, para conquistar a confiança do mercado no pagamento da dívida pública e controlar a inflação. Não havendo superávit, teríamos que concluir, não há garantia de pagamento dos títulos da dívida do Governo.

É claro que isso é uma grande bobagem. Se não houver superávit – na verdade, mesmo quando há um déficit – o Governo paga a dívida velha, e o fluxo dos juros, lançando no mercado dívida nova sem necessidade de superávit primário, que é o resultado de uma receita tributária inferior à despesa corrente. Como essa dívida nova, uma vez lançada, é como dinheiro vivo nas mãos do seu tomador, porque pode ser trocado no BC a qualquer momento por moeda pelo tomador dos papéis, não há possibilidade de calote.

Déficit primário gera inflação, retornam eles. Outra bobagem. Inflação é um fenômeno do ciclo econômico: se a economia está em baixa, o déficit não só é permitido pela boa macroeconomia como é benéfico por estimular a demanda agregada. A ideia de que todo déficit, em qualquer circunstância, e independentemente do ciclo econômico gera inflação é uma tese recorrente dos neoliberais ortodoxos, produto exclusivo de ideologia, já que um aumento de déficit significa mais poder econômico em mãos do Estado.

Quando a economia está aquecida, aí sim, o déficit primário gera inflação. Não é o nosso caso neste momento. Quando o Governo retira das contas primárias o investimento no PAC, como acaba de fazer, ele está apresentando uma relação fiscal legítima do ponto de vista macroeconômico. O que se investe aí tem uma correspondência direta com a criação de ativos econômicos e sociais. Não é gasto solto no espaço. Financia o crescimento, e portanto reduz o déficit como porcentagem do PIB, como normalmente ele é medido.

Também a desoneração fiscal pode ser entendida conceitualmente, pelo menos parcialmente, como um investimento na economia que concorre para o aumento do PIB. No meu entender, teria sido preferível que o Governo mantivesse o nível dos impostos para aplicar os recursos correspondentes no investimento ou no gasto público, de forma direta. Haveria mais certeza na expansão do investimento. De qualquer modo, tomar a desoneração como investimento, como ele fez, não é de todo absurdo.

Dadas essas observações, o que se deve criticar não é a “criatividade” fiscal, mas a postura do Governo em não assumir diretamente a redução do superávit primário ou mesmo o déficit. A economia está em recessão, e vai continuar assim por algum tempo até que alguma iniciativa heroica externa ou interna nos leve a um novo ciclo de produção e consumo. Acho que o Governo não assume de vez uma política anticíclica de tipo keynesiano por um motivo muito simples: teme as notas baixas das agências de risco alimentadas por nossos economistas de mercado, e determinadas a dobrar de joelhos nossa política econômica em nome de interesses especulativos globais."




(De José Carlos de Assis - Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB -, no Jornal GGN, post intitulado 'As bobagens ideológicas em torno do superávit primário' - aqui.

As agências de risco atribuíam conceito AAA a países ricos, bancos e conglomerados diversos até o estouro financeiro mundial de 2008, quando os bancos, 'grandes demais para quebrar', receberam bilhões e bilhões de dólares em repasses estatais, às custas do sacrifício dos povos de países ricos e periféricos. A Grécia é o símbolo trágico desse desastre que até hoje perdura. A desmoralização das agências de risco, contudo, durou pouco tempo: elas logo voltaram a enquadrar cada país/empresa mediante a atribuição de notas subordinados a critérios estabelecidos em sintonia com a política de seus patrões, quero dizer, parceiros. Virtuoso, para elas, é quem adere à austeridade; quem desafiar a receita tem de ter as asas cortadas.

De qualquer modo, convém aguardar as deliberações a ser tomadas na reunião do G20. Pode ser fortalecida a posição do  governo brasileiro consistente no predomínio de obras de investimento e estímulo à produção, via desoneração de impostos, sobre a formação, a qualquer custo, de superávit primário).

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