sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ADVOGADOS CEGOS VIVEM APARTHEID DIGITAL

                          A advogda Deborah Prates e seu cão guia labrador Jimmy.

Ministro Joaquim Barbosa nega petição em papel de advogada cega

Por Herculano Barreto Filho

A cegueira privou a advogada Deborah Prates de trabalhar em duas ocasiões. A primeira vez ocorreu há sete anos, quando ela perdeu a visão ao sofrer ruptura do nervo óptico por causa do medicamento usado para tratar uma pneumonia. Na segunda, a cegueira foi da Justiça. Adaptada à nova condição, ela deixou de exercer a profissão com autonomia há seis meses, quando foi impedida de protocolar petições em papel por causa da implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJE).

No mês passado, um pedido feito pela advogada foi negado pelo ministro Joaquim Barbosa, presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A decisão do ministro afetou pelo menos 1.145 advogados cegos registrados no país desde 2002 pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) — 27 deles atuam no Rio. E virou bandeira para essas pessoas.

Na quinta-feira, uma comissão de acessibilidade formada pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho irá se reunir em Brasília para discutir o assunto. A ideia é condicionar a informatização obrigatória das petições à instalação de um sistema de navegação para cegos, com leitura em tela.

“O processo eletrônico é inevitável. Só que aconteceu sem estudo prévio e sem tempo de adequação. Não se pode privar o advogado de ter o processo em papel. Os deficientes visuais não estão conseguindo trabalhar. Eu chamo isso de apartheid digital”, critica o procurador federal aposentado Emerson Odilon Sandrim, que integra a comissão.

Hoje, o uso de um sistema com leitor de tela para deficientes visuais é incompatível com o programa implantado pelo CNJ. “Será preciso criar um novo programa. Eu vejo com tristeza essa situação, porque a acessibilidade no país ainda não está sendo respeitada. Você pode ter certeza de que ela (Deborah Prates) não está sozinha. É uma luta pela dignidade”, argumenta Luiz Claudio Allemand, presidente da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB.

Falta de visão
Quando perdeu a visão, há sete anos, a advogada Deborah Prates se viu obrigada a fechar um escritório com cerca de dez funcionários na Avenida Rio Branco, no Centro, próximo ao Fórum. Na época, era responsável por cerca de mil processos cíveis e empresariais.

“Ninguém quer um advogado cego. As pessoas acham que a deficiência sensorial equivale à deficiência intelectual”, relembra. Em apenas duas semanas, vivenciou o que chama de ‘apagar das luzes.’

Com a cegueira, a advogada foi a Nova York, nos Estados Unidos, em busca de um cão-guia, um auxílio que se tornou fundamental para a sua autonomia. Após 30 dias de treinamento intensivo em uma fundação especializada, voltou ao Brasil com o labrador Jimmy. Hoje, dá palestras e integra comissões ligadas aos Direitos Humanos da OAB.

Desde que ficou cega, há sete anos, a advogada Deborah Prates luta por autonomia. Nos últimos seis meses, precisou de ajuda para dar entrada em petições pelo Processo Judicial Eletrônico, inacessível a programas usados por deficientes visuais.

1. Como a senhora deu entrada às petições?
— Continuo tendo de pedir a terceiros para enviar petições. Às vezes, peço a um amigo, que me faz a gentileza de me ajudar em casa. Em outras, preciso sair de casa para enviar através de um setor da OAB. Fui banida da profissão. Não posso advogar, porque não tenho acessibilidade. Perdi a minha independência.

2. Como a senhora avalia a atitude do ministro Joaquim Barbosa?
— Ele negou a acessibilidade, que é prevista na Constituição. Tirou a minha dignidade. É uma violação dos direitos humanos.

3. Há outros advogados cegos no Rio que aderiram à causa?
— Ninguém quer se envolver, porque é o ministro Joaquim Barbosa. Estão na aba, para ver o que vai acontecer. Para indeferimentos de liminar, não cabe recurso. Estou pleiteando uma audiência com o ministro, para que ele reveja a decisão. Ele é tão arbitrário que está de férias. Mas tem a maior boa vontade para prender os envolvidos no Mensalão. O problema não é só para os cegos. Há municípios que não têm banda larga.

4. Como a senhora administrou o trabalho com a cegueira?
— Fiquei cega por causa do tratamento de uma pneumonia, que causou o rompimento do nervo óptico. Quando os clientes souberam, foram pagando o que deviam, encerrando o expediente. Fechei o meu escritório para causas cíveis e empresariais. Em 30 dias, perdi tudo. Consegui aposentadoria por invalidez. Aí, entrei em parafuso. Hoje, integro a OAB Mulher e a Comissão de Direitos Humanos da OAB. Luto pelos interesses coletivos.

5. Como foi lidar com a cegueira e o preconceito?
— Ninguém quer um advogado cego. As pessoas acham que a deficiência sensorial equivale à deficiência intelectual. As pessoas saem fora mesmo, porque veem a deficiência como uma doença contagiosa. É o olhar assistencialista que está hoje no Poder Judiciário, no CNJ.

6. Como assim?
— O ministro Joaquim Barbosa nutre um olhar assistencialista. Acha que nós, cegos, precisamos ser ajudados. Não há uma visão de cidadania, como determina a convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência. O ministro rasgou a Constituição. (Para continuar, clique aqui).

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Vacatio legis é uma expressão latina que significa "vacância da lei": o período compreendido do dia da publicação de uma lei até a data em que esta entra em vigor, ou seja, passa a valer na prática. Durante a vacatio legis vigora, em decorrência, a lei anterior, e seu prazo é, regra geral, de 45 dias, no silêncio da lei, ou o que se impuser, à vista da complexidade da norma e/ou da dificuldade de torná-la exequível. No caso dos deficientes visuais, ante a inexistência de banda larga ou aplicativo compatível com sua condição, o princípio da vacatio legis poderia (ou deveria) ter sido aplicado.
Caso persistisse (e é o caso) o impasse após esgotada a vacatio, o tratamento poderia ser estendido, assegurando aos profissionais cegos a sua autonomia.

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