quarta-feira, 22 de agosto de 2012

HITCH NA CABEÇA


Um Kane que cai

Por Marcelo Coelho

Durante cinco décadas, o maior filme de todos os tempos sempre foi "Cidadão Kane", de Orson Welles. Era até chato conferir as listas; "Kane" não saía do primeiro lugar.

O reinado acabou neste ano. Pelo menos entre os mais de mil críticos, programadores, exibidores e outros cinéfilos convocados pela revista britânica "Sight and Sound".

"Kane" passou para segundo lugar, derrotado por "Um Corpo que Cai", de Alfred Hitchcock.
De certo modo, trata-se de boa notícia. É sinal de que as pessoas não respondem a essas enquetes só por inércia, colocando os nomes incontornáveis: "Kane", "Potemkin", "Rashomon", "Nosferatu", "Joana d'Arc".

Para mim, foi de qualquer modo uma punhalada nas costas. "Um Corpo que Cai" mal e mal entraria na minha lista de dez melhores filmes de Hitchcock. Acho a narrativa pastosa, e a dupla identidade de Kim Novak, essencial para a história do filme, não convence visualmente.

Fora isso, é a primeira vez que um filme colorido chega ao topo da lista. Reconheço que existe preconceito meu, mas "o maior filme", o "clássico dos clássicos" tem de ser em preto e branco. Geralmente, as cores "cafonizam" o cinema.

Nem sou o maior fã de "Cidadão Kane". Não hesitaria em dizer que é o filme "mais genial" de todos os tempos. Mas isso é diferente de classificá-lo como "o melhor", ou ainda como "o maior" filme da história.

Um amigo diz que "Cidadão Kane" tem o poder de concentrar em si todos os assuntos do cinema: amor, dinheiro, política, fama, memória, amizade, reconstrução fantasiosa do mundo, busca das origens... e tudo o mais que quisermos.

Discordo com relação ao primeiro item: a história de amor conta pouco em "Cidadão Kane". Como repositório de frases, como carisma dos atores, como entrelaçamento entre amor e política, como objeto de culto, como filme mítico por excelência, "Casablanca", a meu ver, está em primeiro lugar.
Mas seria uma lista diferente: eu não estaria falando dos pontos mais altos do cinema enquanto arte, mas sim dos filmes mais... Mais o quê? Mais "cinemosos" do cinema, talvez.

A lista da "Sight and Sound" aparece de dez em dez anos. Há muitas outras surpresas: "Encouraçado Potemkin" ficou em 11º lugar, atrás de "Homem da Câmera", de Dziga Vertov, que ficou em 8º.

O escândalo deveria ser levado ao Supremo Tribunal Federal. Nenhuma cena do entusiástico documentário urbano de Vertov tem o poder visual e o significado, não digo nem do famoso massacre da escadaria de Odessa, mas sequer das grandes peças de carne penduradas nos ganchos, oscilando como as redes dos marinheiros, no porão do navio que iria conflagrar-se.

Mas sempre se pode aprender com essa lista. Aumentou muito o número dos participantes, incluindo uma quantidade de entrevistados fora dos Estados Unidos e da Inglaterra. Por isso, sobre muitos filmes e diretores eu confesso minha ignorância cavalar.

Bela Tarr, com "Sátántangó", de 1994, está em 36º, empatando com "Jeanne Dielman", de Chantal Akerman, de 1975. "La Maman et la Putain", de Jean Eustache (1973), ganha de "Morangos Silvestres", de Ingmar Bergman.

Avance mais um pouco na lista, e você encontrará "A Brighter Summer Day" (1991), de Edward Yang, "Touki Bouki", de Djibril Diop Mambéty, e "A City of Sadness", de Hou Hsiao-hsien. Não se esqueça de Apichatpong Weerasethakul.

Todos esses estão à frente, por exemplo, de "Em Busca do Ouro", de Chaplin, de "Napoleão", de Abel Gance, de "As Vinhas da Ira", de John Ford, e de "O Iluminado", de Stanley Kubrick.

Wong Kar-Wai fica na frente de Claude Lanzmann e seu "Shoah". Se tudo isso é culpa ou mérito da globalização e da economia dos países emergentes, não sei. Nenhum brasileiro, nem um Glauberzinho de consolação aparece, em todo caso, nos 250 filmes dessa lista, em que "O Piano" ganha de "Caligari", "King Kong" de "A Laranja Mecânica", e "Guerra nas Estrelas" de Méliès.

Distorções da estatística, é claro, surgem nas últimas colocações, porque, quando vai baixando o número de votos, a cabeça de um só crítico faz diferença.

Vendo a lista, não sei se é melhor quando todos estão juntos ou quando cada um responde sozinho.
Antes que me esqueça: "Casablanca" ficou em 84º lugar, empatado com "Fanny e Alexander", de Bergman, e atrás de "Era uma Vez no Oeste", de Sergio Leone. A desordem reina, como se vê, e é inútil chamar o xerife. (Fonte: aqui).

................
O assunto acima já foi tratado neste blog mediante o post "Os Melhores da Sétima Arte", do dia 8, que reproduziu a matéria "Pop cult 89", de Felipe Hirsch.
São cerca de 2.000 (dois mil) filmes na disputa. Acho que nenhum crítico conseguiu ver todos eles. A lista, portanto, é, ao fim e ao cabo, uma lista.
E constatar que "O Poderoso Chefão" partes I e II não está sequer entre os dez mais, convenhamos, é desanimador...

Nenhum comentário: