domingo, 10 de julho de 2011

ALMANAQUE NERD


Resenha: Enciclonérdia: Almanaque de Cultura Nerd

Por Roberto de Sousa Causo

Enciclonérdia: Almanaque de Cultura Nerd. São Paulo: Panda Books, 2011, 248 páginas. Ilustrado. ISBN: 978-85-7888-11-4

Eu não comemorei o "Dia do Orgulho Nerd" ou "Dia da Toalha" em 24 de maio deste ano, porque não sou nerd. Sou esquisito.

Era o que minha mãe dizia - assim como muitos parentes e amigos durante a infância e adolescência. Afinal, eu passava tempo demais mergulhado em livros e gibis, vendo filmes de ficção científica até altas horas da madrugada, e, que horror, levando o conteúdo dessas coisas a sério: a conquista do espaço, a existência de extraterrestres e a importância do avanço científico. Mais do que isso, sou de uma época em que era comum se ouvir que ler demais leva à loucura, e que ler fora da escola é coisa de ocioso...

Mesmo quando outros esquisitos conseguiam se encontrar para trocar idéias e informações, formando por exemplo o que hoje é chamado de "fandom de ficção científica", isso acontecia sob o peso de certas tensões sociais. Dois fãs que formassem um casal sofreriam inveja mortal daqueles que não encontravam apoio e partilha de interesse entre namoradas, familiares ou amigos. Há também relatos de esposas e filhos prometendo pais de queimarem postumamente suas coleções de livros e gibis, e até histórias de liquidações furtivas de bibliotecas pessoais, quando o sujeito estava em viagem... Suprema traição!

As coisas parecem que começam a mudar quando nerds e geeks prototípicos como Bill Gates e Steve Jobs se tornam bilionários da era digital, procurando no mercado de trabalho gente semelhante para trazerem novas idéias e desenvolverem novos produtos, que passaram ser comercializados no mundo todo. Nerds e geeks entraram na cultura popular em séries de TV como The Big Bang Theory e em filmes como A Rede Social (2010). Ao mesmo tempo, os agentes produtores dessa literatura, quadrinhos ou cinema passaram a ser o assunto de obras literárias sérias e premiadas como As Incríveis Aventuras de Cavalier & Klay (2000), romance de Michael Chabon ganhador do Prêmio Pulitzer, e A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao (2007), outro ganhador do Pulitzer, escrito por Junot Diaz. Agora mesmo, na edição de julho/agosto da revista americana The Magazine of Fantasy & Science Fiction, a escritora de FC Elizabeth Hand resenha os livros de e sobre cultura nerd: My Best Friend Was a Wookie, de Tony Pacitti; How To Live Safely in a Science Fiction Universe, romance de Charles Yu; e Jar Jar Binks Must Die... and Other Observations About Science Fiction Movies, de Daniel M. Kimmel. Títulos que dizem tudo...

Pode-se dizer - e tem-se dito repetidamente - que a cultura nerd e geek se moveu na direção do mainstream da sociedade, nos últimos anos. E agora surge no Brasil o primeiro livro que, de modo bem-humorado, dedica-se a explorar e dar ainda mais visibilidade a esse movimento. É o simpático e atraente Enciclonérdia: Almanaque de Cultura Nerd, da dupla Luís Flávio Fernandes & Rosana Rios - ele um especialista em software e ela uma prolífica e premiada escritora da área da literatura infantil e juvenil, criador do Grupo de Estudos de Literatura Fantástica.

O livro, que é bastante atualizado com respeito ao que existe de disponível no Brasil para o público nerd, tem verbetes organizados em ordem alfabética e remetidos, por meio de ícones como os de computador, a áreas diversas como desenhos animados, ciência e tecnologia, "clássicos da literatura nerd", "gadgets", fã-clubes e comunidades, filmes, HQs, seriados de TV e nerds famosos da ficção e da vida real. Na letra G, por exemplo, o leitor vai encontrar "Gaiman, Neil" (escritor e quadrinista); Galáctica (série de TV); Galaxy Quest (filme); Galileu (cientista); "Gates, Bill" (nerd e empresário); o Gato de Schrödinger (conceito da física quântica); Genius (brinquedo); Guerra nas Estrelas (franquia); Google (empresa e ferramenta da internet); Os Goonies (filme); Granger, Hermione (personagem da série Harry Potter); Gravidade (conceito da física) e por aí vai...

É evidente que o livro não pretende apenas "pregar aos convertidos", mas funciona também como um guia a quem está entrando agora nessa cultura particularmente forte na Internet, que, segundo o escritor de FC Bruce Sterling, tem se tornando o paraíso dos fandoms, em particular o de FC. No Brasil, estranhamente (ou esquisitamente) o bastante, a cultura nerd/geek tem amparado o desejo de socialização de milhares de jovens (e alguns maduros), muitos dos quais dão um passo além e passam não só a consumir mas a produzir histórias, jogos, brinquedos e quadrinhos de ficção científica, fantasia e horror. Trata-se definitivamente de uma tendência, palavra mágica do jornalismo cultural e de comportamento, tendência essa que vem mudando radicalmente o quadro editorial de FC e fantasia no país. Sem apelar para afetações sociológicas ou antropológicas, a dupla de autores de Enciclonérdia fala de dentro para quem já faz parte e para quem deseja fazer dessa tendência.

É claro que, para os velhos esquisitos como eu, o movimento na direção do mainstream é ambivalente. Ele nos torna mais aceitáveis, menos segregados; mas ao mesmo tempo mais domesticados, menos ameaçadores a um status quo que, muitas vezes, vale a pena ser questionado diretamente pelo que gêneros como a FC e a fantasia podem fazer como literaturas inquiridoras, mas também pelas atitudes de quem os produz e consome.

Também é evidente que um livro como Enciclonérdia não pode incluir tudo daquilo que faz parte de uma cultura vasta e que transcende em muito o contexto do Brasil urbano atual. Os próprios autores reconhecem, na introdução, que o livro é necessariamente incompleto, e abrem a possibilidade, muito apropriada e inteligente, da sua pesquisa ser continuada no site http://www.enciclonerdia.com.br.

Não obstante, fica difícil dizer que Enciclonérdia não deixa de dar forma a um contínuo de referências em particular, a centro estrato da cultura nerd. Diante desse estrato, é possível pensar nas inclusões e exceções, e criar de improviso um "nerdómetro" que avalia quem está mais no centro e quem está mais na borda da tendência.

Por exemplo, o escritor Isaac Asimov foi incluído, mas Ray Bradbury, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick e outros grandes nomes da ficção científica são apenas mencionados. Star Trek está lá, mas Perry Rhodan não. Star Wars foi incluído, mas não há verbete sobre space opera. Não existe um verbete para a fantasia, gênero que foi embutido no "Literatura Fantástica em Geral". E embora estejam lá O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia (no verbete "Nárnia"), não há nada sobre Conan ou Lovecraft.

Monteiro Lobato é um dos poucos brasileiros mencionados, sem que se diga nada sobre Jerônymo Monteiro, um dos nossos nerds-fundadores - uma lembrança que, assim como as outras apontadas acima, com certeza me afastam do novo universo nerd e me colocam firmemente no terreno ainda mais bagunçado da pura esquisitice. Não sei se isso me deixa feliz ou preocupado, mas gosto de pensar que exista um lado nerd ou esquisito que permaneça não-domesticado, mal encaixado no mainstream. (Fonte: Terra Magazine).

2 comentários:

Anônimo disse...

Como nerd gostaria de dizer que estamos em ótima companhia! Einstein, Pasteur, Von Neumann etc foram nerds, pessoas que têm curiosidade e procuram a razão das coisas, sem aceitá-las passivamente. Gostar de ficção científica é só uma consequência. a propósito, falta Cliford Simak, grande autor de City no comentário. Abraços de um nerd de MG

Dodó Macedo disse...

Senhor anônimo, fiquei curioso em saber seu nome.